domingo, 1 de agosto de 2021

Relações de dominação

   

                                                                                               
  Por Erenildo João Carlos


Um dia desses, eu estava pensando sobre as coisas que nos cercam e as relações que estabelecemos com elas. 

Para vivermos, produzimos e consumimos coisas. Fazemos, compramos, vendemos, damos, recebemos, doamos coisas. Trabalhamos em troca de um salário para comprar coisas, para pagar a conta das coisas que compramos. Toda economia se move em torno disso. Produzir, reproduzir e consumir coisas. Erigimos lugares para elas. Em função dela vivemos, nos movemos e existimos. Em razão delas dirigimos nossas vidas, fixamos nossos sonhos, desenvolvemos nossos desejos, aprendemos a sentir e ter prazer, elaboramos nossos planos e projetos de vida. 

Em face do lugar e do status que as coisas têm em nossas vidas, torna-se óbvio que elas aparecem como sendo a fonte de nossa necessidade, segurança e conforto. A fonte da vida  e da felicidade. Nesse sentido, sem as coisas não teríamos dignidade, liberdade ou valor. Desse modo, tal como elas estão postas e dispostas, impostas e naturalizadas, elas ocupariam um lugar hierarquicamente superior as pessoas, vez que sem elas, nada seríamos. As coisas são; nós, gente, não somos. 

Ora, absorto nesse estado de consciência reflexiva, surpreendi-me com o fato, óbvio, porém nem sempre consciente, de que as coisas são coisas e de que nós, somos nós, isto é, gente, pessoa. 

Entretanto, ao pensar um pouquinho mais sobre isso, adentrando-me no complexo das relações entre nós e as coisas, notei uma contradição e profunda inversão de valor: a íntima relação que temos com as coisas, faz-nos ser, nessa condições, como elas, coisas. 

Ou seja, ao nos relacionarmos uns com os outros, ou conosco mesmos, em vez de nos tratarmos como pessoas, em certa medida e de certo modo, reproduzimos em nossas relações intra e interpessoal, o modo como nos relacionamos com as coisas. Coisificamo-nos, reciprocamente. Provavelmente, se encontre aí, nesse modo de relação social, a origem das múltiplas formas de relações de dominação. 

Ora, dominação é um tipo de relação que temos com as coisas. As coisas compramos, vendemos, produzimos, damos, trocamos, doamos, jogamos fora, quebramos, destruímos, deformamos, arranhamos, torcemos, chutamos, pisamos, desmontamos, manipulamos, brincamos, abandonamos, substituímos, colecionamos, oferecemos, consumimos, descartamos, usamos e abusamos. 

As coisas não sofrem, não se alegram, não sentem, não pensam, não falam, não refletem, não dialogam, não sabem, não tem consciência, não sorriem, não se sentem tristes, nem felizes, não sonham, não planejam, não cultivam, não cuidam, não amam, não choram, não se encantam, não se decepcionam, não nascem, não morrem, não sentem frio ou calor, nem fome ou cede. 

As coisas não precisam de abrigo, de serem amadas, de terapia. As coisas não precisam se alimentar, se confessar, estudar ou aprender. As coisas não lutam, não buscam sua libertação, pois não são nem se sentem oprimidas, dominadas, exploradas, expoliadas, traídas, envergonhadas, abandonadas, desencantadas, presas, assassinadas, discriminadas, assediadas. 

As coisas não são gente, não são pessoa,  por isso lhes falta a vontade de ser e viver, de lutar e se libertar, de sonhar e desejar, se sentir prazer e ser feliz, de exercer a liberdade e usar a inteligência para buscar alternativas que solucionem seus problemas, que resolvam e organizem suas bagunças. As coisas não se libertam, pois estão presas a seus donos.

Com efeito, talvez esteja aí a razão das pessoas estabelecerem relações que não são próprias das relações entre pessoas, vez que as relações de dominação são típicas das relações que estabelecemos com as coisas, ou das coisas com as coisas. 

Ora, se tratamos as pessoas como coisas, se nos vemos e nos sentimos como se coisas fossemos, cultivamos e transmitimos a ideia, desenvolvemos práticas, modos de vida, sentimentos e ideologias de que as pessoas podem ser propriedades e donas das outras. 

Nessas condições, certamente poderemos não nos sentir dominados, oprimidos, explorados, assediados, desrespeitados, desumanizados muito menos dominando o outro. Haveria, nessas condições, uma naturalização recíproca da aceitação da dominação. Uma espécie de acordo tácito, instituído socialmente, no qual estamos inseridos e aprendemos como normal, legitimo  e natural o ser dominador ou dominado.

Ora, se vivemos, existimos e nos movemos em relações sociais de dominação, não seria um desatino perguntarmos: Quem é seu dono? Você é dono de quem? 

Nessas condições, a liberdade é uma utopia e a libertação, uma necessidade de afirmação de que somos pessoa, não coisas. Nessas condições, de fato precisamos de uma 'pedagogia do oprimido', de 'práticas educativas para a liberdade' e de 'ações culturais para a libertação'. 

Precisamos cultivar relações próprias das típicas relações entre pessoas. Precisamos rejeitar a ideia de que as pessoas são coisas. Precisamos resistir, desconstruir às relações de dominação, seja ela qual for, seja ela onde estiver. Precisamos desnaturalizar o sentimento naturalizado da dominação.

Pessoa é pessoa. Coisa é coisa. Somos pessoa, não coisa. Gente é o que somos.

Não temos donos, nem somos donos de outras pessoas.


João Pessoa, 01 de agosto de 2021.