sexta-feira, 30 de maio de 2014

DITOS SECTÁRIOS I



Erenildo João Carlos

Costumeiramente, escuta-se, no Brasil, falar que ´religião, política e futebol não se discute. O curioso é que ouvir esta afirmativa gera um certo estranhamento, sobretudo quando sabemos que vivemos em um país com uma forte tradição religiosa, com uma história de luta a favor da democracia e com uma enorme admiração pelo futebol! Ao ouvir, ponho-me a pensar sobre os possíveis motivos que impediriam as pessoas de conversarem sobre tais assuntos.

Parece-me que, à primeira vista, um aspecto da questão se encontra na formulação ‘não se discute’, um fragmento que poderia ser lido como ‘não se dialoga’. Se estivermos corretos em nossa análise, podemos concluir que os temas da religião, da política e do futebol seriam, sim, objeto das conversas cotidianas. Entretanto, de uma espécie de conversa, marcada pelo jogo do dizer retórico, orientada pela disputa e pela defesa de uma opinião determinada, de um ponto de vista específico, de uma perspectiva assumida. Ou seja, uma conversa que não seria pautada no diálogo, no desejo de compartilhar ideias e do entendimento conjunto. Uma conversa deste tipo é profundamente solitária, pois, nela o interlocutor falante, fala consigo mesmo, em uma espécie de cena, cujo roteiro, conteúdo e argumentação consiste, unicamente, em expressar para o outro o que se crê, o que se pensa, o que se admira, o que se deseja. Sem ouvir, o outro da conversa-monólogo seria o eu falante, ouvinte de si. O monólogo impede o diálogo, porque ele é auto referenciado!

Nota-se, aqui, um segundo aspecto da conversa-monólogo: as coisas ditas são alimentadas por uma motivação belicosa. No lugar do diálogo instaura-se a disputa, a luta, a polêmica. Neste cenário, vence quem escolher e utilizar as melhores estratégias de desqualificação, de desconsideração, de rebaixamento, de silenciamento, de humilhação, de apropriação ressignificada. Nele, o estado é de alerta, de defesa e de ataque. Nele, as estratégias são escolhidas em função da disputa que se pretende travar, do interlocutor-inimigo que se combate, da natureza da questão enfrentada, das implicações das ideias proferidas, da argumentação construída, dos interesses em jogo. Na conversa-guerra não há lugar para o diálogo, mas para vitórias a serem conquistadas e derrotas a serem evitadas!

Um terceiro aspecto desta conversa consiste na impossibilidade do falante ouvir com o intuito de entender e aprender, de falar com o objetivo de compartilhar o saber que se tem. Isto porque, ao conceber o outro como interlocutor-inimigo, o outro sempre será visto como uma ameaça, um perigo, um risco, um desvio, um estranho... Que poderá pôr em questão a tradição aceita, o dogma estabelecido, o interesse defendido, a verdade consagrada, o sentido instituído, o consenso normatizado, a moralidade concebida, o sagrado compartilhado, a preferência assumida coletivamente. Com o interlocutor-inimigo não se busca o entendimento, mas o convencimento!

Observa-se, que, quando as conversas cotidianas em torno do tema da religião, da política e do futebol são pautadas no parâmetro do monólogo, do agir comunicativo belicoso, da concepção de um interlocutor-inimigo, elimina-se a possibilidade do diálogo, do entendimento e da partilha edificante do saber vivido individual e historicamente construído em torno dos referidos temas. 

Com efeito, nossa reflexão aponta para o fato de que os ditos proferidos pelos falantes, numa situação de disputa, se configuram, de um lado, por um modo de dizer específico, que podemos denominar de sectário; de outro, que os ditos sectários seriam uma das principais razões da impossibilidade do exercício do diálogo. Neste contexto, conversar sobre religião, política e futebol funciona como uma estratégia de reprodução social de uma concepção de mundo profundamente sectária. Portanto, em uma cultura do sectarismo não há lugar para o diálogo!

quinta-feira, 1 de maio de 2014

DITOS OPINATIVOS



Por Erenildo J. C.

Os ditos opinativos se apresentam como um acontecimento da linguagem, evidenciado no cotidiano, cujo conteúdo codifica um tipo de saber que se tem sobre algo. Enquanto fala e enunciação, este fenômeno pode ser observado e constatado no cotidiano de nossa biografia existencial, experiência social e registros históricos. Nota-se, portanto, sua presença em conversas familiares, em bate-papos entre amigos, em aulas ministradas nas escolas, em programas de televisão, em pregações religiosas, em documentários e entrevistas, em pronunciamentos de governantes, enfim, em qualquer tempo, lugar e situação em que ocorra a enunciação de algo, um gesto de comunicação, o exercício efetivo da fala entre diferentes tipos de indivíduos e sujeitos sociais.

Não obstante a evidência do acontecimento dos ditos opinativos em nossa vida diária, o seu reconhecimento não se apresenta como uma obviedade, isto é, como algo cotidianamente evidente para os sujeitos falantes e ouvintes. Em outros termos, nem sempre os sujeitos que se expressam opinativamente têm a devida consciência disto, seja em uma situação de comunicação, seja de seus efeitos sociais. Certamente, a não obviedade do evidenciado acontecimento exige uma reflexão mais cuidadosa sobre o assunto. De modo que se tenha, sobre ele, uma clareza do que, de fato, seja um dito opinativo e o saber que pretende ter.

Nesta perspectiva, parece-me que uma constatação que se pode fazer do exercício de observar os ditos opinativos no cotidiano diz respeito ao fato de que ele representa um gênero de fala, que registra a percepção, interpretação e um determinado tipo de saber do indivíduo sobre as coisas do dia-a-dia. As coisas ditas de forma opinativa não teriam fundamento consistente, haja vista ser um campo onde se pode combinar e se relacionar fatos com crenças, sentimentos com interesses, desejos com percepções, mitos com realidades. Enfim, a experiência e a subjetividade do indivíduo se constituiriam na fonte primária das formulações opinativas que se tem sobre as coisas. O conhecimento deste fato no coloca em estado de alerta com relação aos fundamentos dos ditos opinativos!

Segunda constatação. Devido a presença regular, difusa e capilar dos ditos opinativos, parece-me que não seria falso dizer que isto sinaliza que eles têm sido um modo de dizer que se apresenta como um impacto intenso na feitura de expressões, de pronunciamentos, de formulações, de comentários, de proferimentos e de posições assumidas por diferentes tipos de sujeitos em diversas situações e através de múltiplos suportes sociais. O conhecimento deste fato exige que estejamos alerta as coisas ditas que venhamos a escutar!

Terceira observação. Parece que o falante que se pronuncia sobre algo no mundo a partir do dizer opinativo tem um saber sobre este algo que se apresenta, para ele, como evidente em si mesmo, a ponto de não refletir ou questionar nem sobre o saber que supõe ter, nem sobre o modo opinativo de comunicá-lo. Tal atitude e procedimento sinalizariam que o dito e o dizer opinativo têm uma pretensão de verdade, ou seja, consideram-se como possuidores de um saber que são suficientes em si mesmos. O conhecimento deste fato exige que estejamos alerta a noção de verdade que justificam os ditos opinativos!

Desde a antiguidade, existe esta consciência reflexiva sobre os ditos opinativos. Por exemplo, os gregos inventaram três termos para designar o saber que temos sobre algo. Doxa (opinião), sofia (sabedoria) e episteme (conhecimento). A lembrar de certos escritos como o de Platão (428 ac. - 348 ac.), Francis Bacon (1561-1626), Gaston Bachelard (1884-1962) e Paulo Freire (1921-1997), por exemplo, nos deparamos com o fato de que todos eles, em tempos e lugares diferentes, em situações e domínios distintos, fizeram a crítica aos ditos, ao dizer e ao saber opinativo. Os diálogos de Platão, a exemplo do livro a República, testemunham o esforço do filósofo em refletir sobre uma determinada questão tendo em vista ascender ao mundo do espírito. Emblemático disto tem sido sua metáfora, intitulada de Alegoria da Caverna. Bacon em seu livro Novum Organum, discutiu o assunto, sugerindo a necessidade de superar o caráter opinativo que se tem sobre as coisas. São bem conhecidas suas críticas aos ídolos da tribo, da caverna, do foro e do teatro que bloqueariam a mente humana do acesso ao conhecimento. Bachelard também refletiu sobre o assunto no campo da filosofia da ciência em seu livro o A formação do espírito científico. Neste livro, encontram-se reflexões que aponta o entendimento de que a ciência avança a medida que opera rupturas no campo do saber, no sentido de distanciar-se da opinião e produzir conhecimento. Paulo Freire, em seu livro Educação como pratica da liberdade, chama atenção para o fato de que a opinião é um dos componentes constitutivos da consciência ingênua, nível de pensamento que a prática educativa problematizadora e libertadora, proposta por ele, pretendia superar.

Como se vê, a crítica secular contra os ditos e saberes opinativos indica que a opinião, ao ser empregada como um parâmetro orientador do pensamento, dos sentimentos e das ações, pode incorrer em erros, equívocos e danos ao conhecimento, às pessoas e às instituições. De modo que formar uma geração de cidadãos e de profissionais a partir da opinião seria prejudicial ao desenvolvimento da consciência crítica do indivíduo e da qualidade de vida de uma nação. 

Quem se consultaria com um médico que não soubesse diferenciar a doença da saúde e desconhecesse os procedimentos adequados à cura? Quem solicitaria o serviço de um engenheiro ou arquiteto para a construção de uma casa, de um edifício, de uma ponte ou de uma estrada, que desconhecesse os princípios básicos do planejamento e da execução destas obras? Quem matricularia seu filho em uma escola onde os professores se limitassem a dizer o que acham sobre as coisas, e que substituem o conhecimento produzido pela mera troca de opiniões entre os alunos? Quem atribuiria credibilidade ao ensino de um professor universitário que transferisse para o estudante a responsabilidade de transmitir o assunto que lhe compete ensinar? Que religioso se predispõe a ouvir um discurso carente de fundamentação teológica? Quem contrataria o serviço de um advogado que não sabe diferenciar o direito de privilégio? Quem assistiria a um programa de televisão onde o apresentador distorce os fatos, discrimina, desqualifica e dissimula em função da audiência ou de interesses ocultos? Quem votaria em um candidato que aspira a cargos públicos tendo em vista interesses estritamente pessoais e privados em detrimento dos fins coletivos e públicos? Quem aspira um governante que desconheça os fins sociais e os procedimentos adequados para a elaboração e efetividade das políticas públicas? Quem aceitaria, em sã consciência, uma fala que não contribui para um melhor entendimento das questões abordadas? Parece-me que somente aqueles que se deixam levar pelos ditos e saberes de natureza opinativa. 

Enfim, parece-me que a dominante cultural dos ditos e saberes opinativos em nossa história presente, forja sua aceitação e naturalização. De modo que, ela acabam por constituir uma subjetividade carregada de ingenuidade, de um saber frágil/confuso/restrito/mágico e de um modo indiferente do cidadão, do eleitor e dos governantes, dos profissionais, dos servidores e dos consumidores de se relacionarem com a coisa pública, com a vida e com o desenvolvimento do país.

Este acontecimento tem sido objeto de reflexão e estudo de várias áreas do conhecimento. Em todas, encontram-se fortes críticas ao caráter opinativo do saber e uma indicação razoável de que ele deve ser superado. Em função disto, emergem esperanças, utopias e projetos concretos de ação tendo em vista a constituição de sujeitos falantes e ouvintes, que possam transitar de uma cultura pautada nos ditos, nos dizeres e nos saberes opinativos para outra, alicerçada no saber elaborado. Numa sociedade do conhecimento!


João Pessoa, 01 de maio de 2014.