domingo, 26 de outubro de 2014

DITOS RELIGIOSOS III



Por Erenildo João Carlos


A realidade existencial, entendida, aqui, como uma série particular de fragmentos da totalidade das múltiplas e diversas experiências vividas cotidianamente pelo indivíduo e agrupamentos humanos, em contextos sociais e históricos específicos, ganha primazia nas considerações dos ditos religiosos. 

Nesse sentido, pode-se dizer que a realidade, como um acontecimento vivido, constitui o terreno empírico, o solo fecundo de onde brotam as necessidades, os desejos, os sonhos, as aspirações, as metas e os projetos de vida daqueles e daquelas que se reconhecem como religioso. Não tendo, nesse caso, nada de diferente de outros ditos que se apoiam na realidade para dizer o que querem dizer. A realidade é, portanto, o lugar de onde os ditos e dizeres religiosos retiram, extraem a matéria prima de parte de seu conteúdo. 

Desse modo, entende-se que sem o alicerce da rocha das coisas existentes, os ditos religiosos perderiam, em parte, seu significado, seu sentido, seu caráter de verdade e, consequentemente, a possibilidade de apresentar o que lhe é próprio, isto é, os valores que devem ser reconhecidos e aceitos como religiosos. Sem as coisas de fato existentes os ditos religiosos seriam palavras vazias, ocas, abstratas, sem sentido existencial, pertencentes ao mundo da fantasia, do faz de conta, a exemplo das coisas ditas, escritas e vistas no âmbito do domínio cinematográfico e literário. 

Com efeito, se consideramos, o real, isto é, o algo que de fato existe, como um dos conteúdos necessários à produção e à formulação de um determinado dito e dizer, a exemplo do religioso, encontramo-nos dispostos a aceitar o princípio de que não valeria apena dizer algo, se o que fosse dito e o modo de dizê-lo, não gerasse no outro a consciência de que o que está sendo dito, tivesse uma existência, de fato, efetiva e possível. Ou, inversamente, concordamos com a hipótese de que o que seja dito deverá ser dito de tal maneira que seja capaz de reproduzir na consciência do outro, pelo menos, uma representação imaginária com efeito de realidade. De modo que o outro, ao ouvir o que foi dito, seja convencido da realidade e da veracidade da mensagem anunciada. 

Estamos, assim, diante de um pressuposto que serve tanto para o dizer das coisas mais simples, próximas e familiares, como para o dizer das coisas mais complexas, distantes e estranhas! Sem fazer menção, sem ativar e articular o componente das coisas existentes, sejam elas naturais ou culturais, o dizer religioso perderia uma de suas principais forças de convencimento, de exercício de poder sobre a consciência, a vontade, a conduta, o cotidiano e os projetos de vida das pessoas! 

É em função do pressuposto de que o que está sendo dito seja real e verdadeiro que encontramos falas cotidianas, marcadas com o sentimento e a expectativa de que o que está sendo dito tem, de fato, sentido. Exemplos: ‘somente não ganha quem não joga’; ´o Brasil seria o favorito para conquistar a copa do mundo’; ‘o candidato X vencerá nas urnas’; ‘não se deve votar no candidato Y porque ele é corrupto’; ‘segundo a pesquisa feita a pedido de tal rede de televisão, o candidato Z será eleito’; devemos ‘consumir tal alimento, porque ele é saudável e nutritivo’; ‘a vida sedentária e ociosa é o motivo da origem de muitas doenças’; ‘a força do pensamento positivo cura’; ´a mente se libertará da ilusão do pecado ao se recitar ou se cantar tais palavras,’; ‘a crença em Deus é o sentido da vida’; ‘a vida se torna melhor estudando e trabalhando’; ‘as desigualdades capitalista serão superadas por meio da organização e da militância’; ‘comprando este ou aquele produto seremos felizes’; ‘fazendo o bem ao próximo, ocorrerá o mesmo conosco’ e ‘aqui se faz, aqui se paga’.

Esse conjunto de falas, exemplifica a presença de elementos de realidade que, combinada, associada e vinculada a algo anunciado, pode ou não acontecer, ter ou não ter referência na realidade. Exemplifica, também, que o modo como o dizer articula e constrói a junção entre os elementos presentes nas falas, geralmente, tem a pretensão de produzir, no ouvinte, um efeito de verdade, que, por sua vez, pretende conferir legitimidade, certeza e confiabilidade ao que está sendo dito.

Em uma conversação, ao ser ativado o sentido de realidade na consciência do outro, ou seja, quando o outro compartilha do que está sendo dito como algo verdadeiro, verifica-se, consequente, a possibilidade da aceitação de que o que está sendo dito tenha relevância. Nesse momento, ocorre uma experiência significativa: o algo que foi dito transcende sua existência empírica no seio do mundo como ‘algo em si mesmo’, e adquire um status de relevância ou importância no plano da consciência, do pensamento, da razão, do sentimento, do desejo, enfim, da subjetividade do indivíduo. 

Pode-se descrever a experiência desse acontecimento como uma espécie de transcendência: algo deixa de ser o que é ou parece ser, para se tornar outra coisa, em si mesma, ou para nós. Quando isto acontece, esse algo muda, ultrapassa, desloca seu status inicial, passando a ser outra coisa distinta do que era anteriormente. 

No caso específico da experiência da própria tomada de consciência da transcendência em nós, ou seja, da transformação do modo como nos relacionamos com aquela coisa existente, pode-se dizer que a transcendência acontece quando alcançamos um patamar de relação com a coisa existente a ponto de ela se apresentar para nós revestida de outro significado, sentido, valor. Nesse processo, parece até que a ‘coisa em si’ mudou, mas, ao fim e ao cabo, descobrimos que fomos nós que mudamos ao redimensionar nossa relação com ela, em face das coisas ditas que ouvimos. Em outras palavras, nossa consciência, em relação à ela, transcendeu do estado anterior para outro, a partir do modo diferente de relação que passamos a estabelecer com ela, pela mediação da conversa. 

Verifica-se que o dizer e os ditos religiosos realizam um modo particular de transcendência na consciência dos indivíduos falantes e ouvintes, em função do modo como estabelecem a vinculação entre o real e os outros elementos presentes na mensagem pronunciada. O modo singular da transcendência presente nos ditos religiosos consiste no fato de que o dizer religioso opera o reconhecimento da relevância das coisas, ou seja, atribui valor, significado e sentido as coisas existentes, por meio do redimensionamento da realidade a partir de diversos aspectos diferenciados e escolhidos, integrantes do universo do conteúdo da crença que falante e/ou ouvinte compartilha como certa e verdadeira. Assim, o real, seu conhecimento, seu reconhecimento e sua relevância aparecem nos ditos religiosos em grau, forma, intensidade e gênero em função do que o falante crê e de que o ouvinte deve ouvir. No dizer religioso, a crença apresenta-se como o critério determinante do processo de convencimento e de aceitação, produzido numa conversa. Em outras palavras, a transcendência religiosa pauta-se na valorização de algo a partir do apelo a fé, uma espécie de certeza daquilo que não se conhece de fato, mas que se crê que assim seja.

Ademais, nesse estágio de nossa investigação sobre o assunto em tela, pode-se dizer que embora a realidade e a transcendência apareçam como dois pilares fundamentais dos ditos religiosos, no jogo do dizer religioso, esses dois aspectos são vinculados, conectados, combinados, associados de modo tal que o conteúdo da mensagem transmitida ou comunicada seja capaz de afirmar, assinalar, de forma contundente e eficaz, algum ponto da crença compartilhada pelo indivíduo ou grupo social determinado. Nesse sentido, pode-se conceber a hipótese de que o binômio realidade-transcendência, presente nas falas religiosas, circulantes nas conversas cotidianas, produzidas em diversos lugares, tempos, situações e circunstâncias sociais, seria similar ao encontrado em mitos, lendas, narrativas e ensinamentos históricos que povoam o imaginário cultural religioso do povo brasileiro.


João Pessoa, 26 de outubro de 2014.