terça-feira, 29 de janeiro de 2013

A CONSCIÊNCIA DA COMPLEXIDADE DO DIZER




Erenildo J. C.



Movidos pela necessidade de sobrevivência, pelo desejo de dizer algo,  pelos achados encontrados ou pelo  encantamento diante das coisas e dos outros, aprendemos a nos comunicar, isto é, a dizer algo sobre alguma coisa para alguém.
No curso de nossa história, inventamos formas diferentes de comunicação: os gestos, os gritos, as falas, os sinais, as imagens e as escritas são alguns exemplos. Aos poucos, durante um certo tempo, cada uma dessas produções foi sendo fixada, incorparada e transmitida de uma geração à outra, foram se tornando patrimônio cultural da humanidade e atributos do gênero humano.
No desenvolvimento histórico do ato de falar aprendemos que certas maneiras de dizer comunicam mais ou menos, melhor ou pior aquilo que se quer dizer. O acúmulo da experiência comunicativa permitiu subistituir um modo por outro, combiná-los e refiná-los. Nesse processo, o gesto e o grito foram sendo substituídos pela fala, que ganhou um lugar fundamental no contexto das relações sociais. Ontem e hoje, vários povos, etnias, raças e grupos sociais recorreram (e recorrem) a cultural oral, como meio de comunicação hegemônico. Antes da invenção da escrita, vivemos milhões de anos imersos no seio da cultura oral e gesticular. A história dos índios brasileiros é um exemplo do que estamos tratando!
A relevância do acontecimento da fala em nosso cultura, como uma maneira de dizer algo para alguém, fez dela não-somente um ato de aprendizagem necessário à mediação da sociabilidade dos indivíduos e grupos sociais, como também operou um deslocamento da preocupação da fala para o dizer: o que se diz, as maneiras de dizer, seus efeitos e seus modos de existência se tornaram objetos do conhecimento.
Esse fenômeno evidencia uma necessidade individual e social do aprofundamento da consciência sobre o dizer, sugerindo à formulação de perguntas do tipo: podemos ter consciência do que dizemos? Se podemos, quais são os tipos e níveis possíveis de consciência sobre o dizer? Quais são as estratégias de análise adequadas para atingirmos a consciência almejada sobre o tipo e o nível do dizer investigado?
Provocadas pelo acontecimento da fala e do dizer, as perguntas formuladas assinalam, de certo modo, a relevância da reflexão, do estudo, da pesquisa e do ensino sobre os dizeres, os ditos, seus efeitos e seus modos de existência que tem sido empreendido sobre a questão por diferentes ciências, áreas de conhecimento e práticas culturais: psicologia, sociologia, antropologia, história, filosofia, neurociência, semiótica, análise do discurso, religião, política, mídia, pedagogia, educação etc.
 O fato é que o par falar-dizer exige que tenhamos consciêcia de sua complexidade, suas múltiplas dimensões e implicações. Sobretudo, quando militamos e trabalhamos no sentido do desenvolvimento de uma consciência crítica e criativa capaz de empoderar o indivíduo e os sujeitos sociais a dizer o que pensa, sente e vive. Entretanto, a consciência que pretendemos ter, saber ou constituir está diretamente relacionada ao aspescto do dizer que elegemos como objeto de nossa preocupação, a exemplo da consciência enunciativa que desenvolvemos mediante a análise arqueológica do discurso acionado e articulado pelo falante que diz alguma coisa sobre algo para alguém.

João Pessoa, 27 de janeiro de 2013.




DITOS NÃO FEITOS




Erenildo J. C.

Provavelmente, você tenha ouvido a frase ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’. Hoje, ao ouvi-la, pus-me a pensar sobre seu significado. A primeira ideia que esse dito popular comunica consiste na possibilidade de alguém dizer alguma coisa que não faz.  A segunda ideia diz respeito à consciência que o falante tem da relevância do que diz. O que é evidenciada no conselho dirigido ao ouvinte no sentido de que ele oriente sua ação em conformidade com o que a mensagem anuncia. Por último, a frase sugere uma indisposição (ou impossibilidade) do falante fazer o que diz, mesmo reconhecendo sua importância.
O ato de dizer e não fazer ou de não fazer aquilo que se diz, mesmo tendo consciência de sua importância, identifica um evento muito comum em nossos dias e histórias. Talvez você ainda não tenha se apercebido desse fenômeno. Façamos um exercício de reconhecimento. Faça um esforço de se olhar no espelho de sua vida, relembre algumas de suas falas, algumas coisas que você tenha dito e não fizera. Agora, se distancie de você mesmo! Olhe no seu entorno, escute as pessoas ao seu redor, aquelas com quem você convive e observe quantos ‘ditos não feitos’ ocorreram.  Se distancie um pouco mais! Você gosta de poesia, de romance, de drama, de estória policial, enfim, de literatura? Observe sua mensagem, sua narrativa e verifique quantos ‘ditos não feitos’ elas registram. Você escuta música? Escolha as que você mais prefere ouvir. Ouça suas letras e melodias: quantos ‘ditos não feitos’ elam cantam. Tome um pouco mais de distância! Você assiste filme? Escolha, alguns de seu gosto e verifique quantos ‘ditos não feitos’ eles veiculam. Ora, se assim quiser, poderia continuar a adentrar na rede de diversas práticas culturais do nosso tempo presente e passado, tendo em vista identificar e constatar a presença de ‘ditos não feitos’.
A regularidade desse fenômeno singular em tempos, lugares distintos e diversos nos possibilita elaborar algumas ideias mais gerais, não apenas sobre sua existência, enquanto um acontecimento que marca as relações sociais e intersubjetivas, mas também sobre seu modo de ser. Primeiro: esse modo de ‘dizer o que não se pretende fazer’ pode ser nomeado como retórico: discurso retórico, fala retórica ou assertiva retórica. Vamos chamá-lo, aqui, de ‘ditos não feitos’. Segundo: a presença do fenômeno é intensa, ramificada. Ele perpassa classes, grupos, raças, etnias, religiões, partidos políticos, ONGs, movimentos sociais, empresas, instituições governamentais e a mídia.  Ele contamina e contagia nossa vivência pessoal e experiência social. Terceiro: a existência peculiar dos ‘ditos não feitos’ que trazem a consciência da relevância do que é dito e sua concomitante não efetividade, por parte do falante, evidencia a necessidade de que seja compreendido e explicado em seu modo particular de ser e funcionar. Quarto: parece que ‘os ditos não feitos’ se apresentam como uma espécie de acontecimento discursivo merecedor de nossa atenção reflexiva, corroborando a necessidade da formulação de perguntas como as seguintes: por que se diz o que não se faz? Por que não se faz aquilo que se insiste em dizer, ensinar e aconselhar? Por que denunciamos a impertinência de certas ações ao desencorajar que orientem suas ações e vidas a partir delas?
Uma coisa está posto: quem diz a frase ‘faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço’ embora seja contraditório, parece ser uma pessoa sincera e consciente do que diz. Então, por que ela não faz o que diz? Talvez porque não considera o que diz como necessário, possível ou desejável. E você, o que pensa sobre os ‘ditos não feitos’?

João Pessoa, 15 de janeiro de 2012.