segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

O DIZER ESPERTO II




Por Erenildo J. C. 


Como foi discutido anteriormente, o modo retórico-pragmático de pôr em funcionamento a fala, a partir da esperteza, proporciona o aparecimento, o cultivo e o desenvolvimento de uma série de ditos e de dizeres, denominados, aqui, de espertos. 

Trata-se, com efeito, de uma espécie de linguagem que utiliza um jogo argumentativo específico, como ferramenta, estratégia ou dispositivo de convencimento e persuasão do outro, no curso de uma conversa, debate, diálogo, em suma, comunicação, cujo objetivo visa alcançar, pela via da esperteza, determinados fins, realizar certos interesses, sejam eles de natureza ideológica, política, religiosa ou econômica.

Um dos efeitos esperados é o de gerar no ouvinte a impressão de que o que está sendo dito seja certo, verdadeiro e sincero. O que não passa de uma falácia, face ao gênero e à natureza do objetivo almejado. Por ser geralmente associado à produção de danos no outro: bens, imagem, prestigio, saber, competência, posição etc., o objetivo é, na maioria das vezes, dissimulado e oculto – um não-dito 

Entretanto, em função da tomada de consciência (seja por descoberta, revelação, denúncia ou delação) de que o sujeito falante não tem comprometimento efetivo com a retidão, a verdade e a sinceridade (confirmada pelo conhecimento de sua trajetória de vida pessoal/profissional, marcada pela esperteza), o ouvinte acaba por não acolher a mensagem formulada e, consequentemente, não se comportar, agir, falar, sentir e pensar do modo esperado, isto é, em conformidade com os fins espertos postos em jogo no horizonte argumentativo da esperteza.

Quando isso acontece, frustrado, decepcionado, o sujeito esperto desencadeia, raivosa e sutilmente, o uso de procedimentos mais agressivos e violentos: de um lado, intensifica e diversifica a série de ditos constituídos pela mentira, pela dissimulação, pelas meias verdades e pelas promessas irrealizáveis; de outro, aciona falas e dizeres, tecidos na ameaça, no medo e na desqualificação do outro e de tudo aquilo que seja contrário a seus interesses.

Não importa como isso será feito no âmbito da série de argumentos que ativará. Poderão ser acionados elementos de diversa natureza e gênero: estórias e experiências pessoais; narrativas de sacrifício, de heroísmo ou de drama locais e sociais; formulações baseadas em mitos, lendas ou ritos convenientes, advindos do saber e da cultura popular; saberes oriundos da erudição, elaborado no âmbito da filosofia, da teologia, da ciência ou do direito. Independente da natureza da formulação, o que interessa são os fins a serem alcançados. Com efeito, na economia dos ditos e dizeres espertos, o que vale é contabilizar o lucro, o ganho, o quanto foi possível obter ‘com o chapéu alheio’, seja ele consumidor ou trabalhador; cidadão, servidor ou governante; mercado, sociedade civil ou Estado; presente, ausente, próximo ou distante.

Vale salientar, no entanto, que a força do convencimento e o efeito das coisas ditas sobre o ouvinte não se encontram tão-somente no âmbito do jogo argumentativo. Seu poder e efetividade concreta são retroalimentadas no seio da cultura da malandragem consentida e compartilhada, que impregna instâncias do Estado, da sociedade civil e das empresas. 

Em outros termos, pode-se dizer que o solo histórico-cultural brasileiro da malandragem apresenta-se como fértil, graças ao nepotismo, à corrupção, ao fisiologismo, ao clientelismo e ao patrimonialismo instalado e institucionalizado. Nele, os ditos espertos circulam de terno e gravata, de salto alto e nariz empinado, de relógio e pulseira de ouro, com ares de prestígio, superioridade e realeza. Nele, florescem e se alastram, ocupam espaços públicos e privados diversos; ganham visibilidade e legitimidade institucional nas câmaras, nas assembleias, nos conselhos, nos colegiados, nos fóruns, eventos, púlpitos e palanques. São ouvidos e vistos em rede de televisão e da internet. Capilarizam-se no cotidiano, alimentando-se por meio de práticas desumanizantes, pautadas na discriminação, na segregação, no preconceito, na interdição de direitos, no puxar o tapete do outro etc. 

No solo histórico-cultural da malandragem, os ditos e dizeres espertos são erigidos à condição de marco de referência da linguagem excelente, parâmetro de sucesso, de eficiência e de eficácia. Graças a eles, aumentam-se as vendas de produtos e serviços; elegem-se candidatos; convertem-se descrentes; mobiliza-se a população; derrubam-se governos; difunde-se utopias e visões de mundo.

Corolário de uma certa cultura e história brasileira, que tanto muitos desejam superar, os ditos e dizeres espertos conferem poder aos malandros para o exercício inteligente e competente, legitimado e compartilhado, do controle e da dominação, realizado, por meio do poder da palavra, no âmbito da gestão das pessoas, das finanças, dos valores, dos sentidos, dos saberes, das palavras e das coisas cotidianos.

Em face do reconhecimento da existência da cultura da esperteza, e dos ditos e dizeres espertos, parece-me que seja prudente o exercício da dúvida metódica diante do que se escuta (lê e vê), mantendo-se sempre em alerta, prevenindo-se e precavendo-se. Ou, como afirma a sabedoria popular: que estejamos sempre ‘com a pulga atrás da orelha’, diante dos que celebram e defendem a máxima do ‘fazer festa com o chapéu alheio’.


João Pessoa, 18 de janeiro de 2016