sábado, 31 de janeiro de 2015

O DITO E O DIZER PRAGMÁTICO I



Por Erenildo J. C.

Tenho refletido, nos escritos anteriores, sobre a região da linguagem designada de dizeres e ditos. Tal região vem à luz, isto é, ganha existência e inteligibilidade através da fala. Por meio dela, ou seja, da articulação de séries significativas de som, o sujeito falante, ‘ao dizer algo sobre alguma coisa’, proporciona ao sujeito ouvinte o registro simultâneo da maneira como diz, isto é, do modo como argumenta, profere, pronuncia e formula o conteúdo das coisas ditas, assim como o sujeito efetiva, concretiza, objetiva e materializa, foneticamente, por meio de sintagmas, frases, assertivas e formulações diversas e determinadas, o significado, o sentido, o saber e o entendimento que possui, assume, escolhe, valora e aciona em sua fala. 

Em função disso, torna-se possível, de um lado, identificar e analisar, nas falas dos sujeitos falantes e dos ouvintes, que o dizer (o modo) e o dito (a formulação) são coisas distintas tanto quanto dois aspectos inseparáveis, ontológicos da fala.

De outro, permite que seja realizada a investigação e a análise, desses constituintes da linguagem, nas conversas, nos diálogos, nos debates, em suma, no agir comunicativo estabelecido entre sujeitos falantes e ouvintes, emissores e receptores, situados em tempos e lugares sociais distintos e diversos.

Quando consideramos esse pressuposto como correto, abre-se um campo de observação, reflexão, estudo e pesquisa sobre o dizer e o dito, enquanto duplos inseparáveis da linguagem. Assim, ao nos dispormos conhecê-los, isto é, a ouvir os sujeitos falantes concretos no cotidiano, situados em diferentes espaços formais e não formais, a exemplo das escolas, das mídias, das instituições religiosas, dos partidos políticos, dos espaços governamentais, da sociedade civil organizada e da iniciativa privada, poderemos confirmar e conhecer a existência dos dizeres responsáveis pela produção e proliferação de séries peculiares de ditos, grávidos de formulações específicas, de delimitações e articulações determinadas entre dizeres e ditos particulares, a exemplo dos pragmáticos. 

Ao longo das análises empreendidas sobre as falas cotidianas, tenho encontrado constantemente com ditos, produzidos por ‘um modo de dizer as coisas’, totalmente descomprometidos e sem responsabilidades éticas, profundamente despreocupados com questões relativas à verdade ou à falsidade, ao normal ou ao anormal, ao certo ou ao errado, ao possível ou ao impossível, ao real ou ao imaginário. Tenho constatado que as coisas ditas, produzidas no universo desse dizer, são acionadas e mobilizadas, articuladas, significadas e ressignificadas, construídas e desconstruídas, negadas e afirmadas, valorizadas e silenciadas, desde que sejam úteis aos objetivos do sujeito falante, desde que sejam eficientes para realizar o fim proposto e desejado por ele.

Devido a centralidade que os referidos ditos e dizeres conferem a utilidade e a eficiência das coisas ditas e a função que seu conteúdo e suas estratégias têm no convencimento dos sujeitos ouvintes, no que tange aos fins pretendidos pelo sujeito falante, podemos identificá-lo e nomeá-lo como pragmático. 

Por conseguinte, pode-se dizer, resumidamente, que o dizer e o dito pragmático desenham uma espécie de fala que advoga a favor de interesses determinados. Em face desses interesses, os ditos e os dizeres mobilizam, articulam e empregam uma série de elementos úteis, sejam eles verdadeiros ou falsos, certos ou errados, permitidos ou proibidos, loucos ou normais, imaginários ou reais, desde que sejam coadjuvantes na efetividade do interesse em questão.

Os ditos e os dizeres pragmáticos são modalidades dos dizeres e ditos retóricos, já tratados em um escrito anterior. Considerando a presença intensa e diversa dos ditos e dizeres pragmáticos, de sua forte presença no agir comunicativo dos sujeitos falantes encontrados em diversas situações de conversação do cotidiano, arrisco-me a formular a hipótese de que vivemos sob a égide da hegemonia do signo de falas pragmáticas.

A tomada de consciência desse acontecimento sugere que o sujeito ouvinte desenvolva uma escuta vigilante, crítica e duvidosa seja com relação ao conteúdo e às estratégias, seja com relação à sinceridade e aos propósitos dos sujeitos falantes. 

Portanto, o reconhecimento desse fato cultural da comunicação contemporânea exige uma escuta reflexiva e crítica em relação às formulações pragmáticas difundidas por meio de pronunciamentos políticos, de propagandas que visam o consumo de bens e serviços, de pregações e anúncios religiosos, que objetivam a conversão e o governo dos indivíduos, de notícias postas em circulação pelas redes sociais e midiáticas que visão a formação de uma opinião pública sobre certos assuntos, assim como por meio de falas comuns, aparentemente inocentes, realizadas nas conversas diárias.



João Pessoa, 31 de janeiro de 2015.