sábado, 26 de julho de 2014

DITOS RELIGIOSOS II


Por Erenildo João Carlos

O fato de constatar a presença dos ditos religiosos em registros e falas dos mais diversos tempos históricos, nos mais diferentes lugares culturais e espaços sociais de conversação, o fato de verificar a formulação e o pronunciamento dos ditos religiosos por diferentes tipos de indivíduos, sujeitos e instituições religiosas, sustenta a hipótese de que eles têm uma especificidade, que pode ser objeto de nossa reflexão, investigação e análise. 

As coisas ditas no cotidiano, movidas pelas regras do dizer religioso, possibilitam uma gama de pontos iniciais de reflexão e de conclusões sobre seu modo de existência, seu conteúdo, suas finalidades religiosas, teológicas, científicas, ideológicas, políticas, culturais, mercadológicas e educativas. Não obstante tamanha variedade de questões que podem ser formuladas, neste momento, pretendo dialogar sobre dois pontos fundamentais para a identificação e a descrição do dizer e dos ditos nomeados como religiosos, a saber os componentes ‘realidade’, que tratarei agora, e ‘transcendência’, que aprofundarei no próximo escrito (Ditos religiosos III).

Ao observar atenta e cuidadosamente o conteúdo das falas cotidianas identifiquei um fato: os ditos religiosos são grávidos de realidade, isto é, de um conteúdo tecido por fios significativos que acionam aspectos ligados às condições de existência do ser humano, em geral, ou do próprio falante, em particular. Realidade que a um só tempo expressa e representa algo necessário ou suposto como sendo; algo que, por isso mesmo, se torna desejado, almejado; algo que, com efeito, passa a ser assumido como um objeto sobre o qual se fala de um modo especial; algo que adquire um status, um valor, um grau de relevância peculiar. Realidade presente tanto nas falas cotidianas quanto nos arquivos dos ditos religiosos das religiões hegemônicas, indígenas e afrodescendentes, mencionados no escrito anterior.

Não é demais assinalar, sem especificar um dito religioso em particular cotidiano ou integrante da memória cultural, que o real valorado positivamente, presente nos ditos religiosos, pode expressar e representar múltiplas coisas; pode se vincular a diversas dimensões da existência imediata, cotidiana e histórica do indivíduo falante, assim como a determinado grupo e sociedade, estendendo-se até mesmo ao gênero humano. Exemplo disto poder ser algo relacionado à preservação da vida (alimentação, segurança, violência, morte ...), à cura do corpo (saúde, doença, remédio, exercícios físicos, cuidados, hábitos ...) ou à reprodução da espécie (casamento, sexualidade, procriação, fertilidade ...); a demandas sociais (família, emprego, moradia, lazer ...) e culturais (informações, saberes, conhecimento, ideologias, tradições, crenças, vivências ...); ou à subjetividade (preferências, gostos, inclinações, opiniões, desejos, prazeres, interesses, expectativas, perspectivas, sonhos, utopias ...).

O dizer e os ditos religiosos ao evidenciar algo do mundo real, ou seja, ao funcionar como uma espécie de consciência social que conferi visibilidade à necessidade de certas coisas, faz de uma maneira tal que imprime no objeto desejado e nos ditos sobre ele, um grau de importância tão elevado a ponto de decretar que a impossibilidade da aquisição e usufruto deste algo determinado seja considerado, concebido, sentido e tratado com um acontecimento capaz de pôr em risco a própria existência do sujeito, sua felicidade ou sentido de vida.

Com efeito, se o percurso da investigação empreendida estiver correto, conclui-se que: (a) os ditos religiosos se constituem, de um lado, de um conteúdo composto pelo real, de outro, de uma realidade valorizada positivamente; (b) acionar e mobilizar determinados aspectos da realidade, intencionalmente reconhecido como algo necessário e imprescindível a existência humana ou da natureza, por isso mesmo, posicionado e visto como algo de suma importância, consiste em uma das regras fundamentais do funcionamento do dizer religioso; (c) os ditos religiosos se apresentam como artefatos culturais que registram uma espécie de consciência acerca da necessidade ou da pretensa necessidade de algo para indivíduos, grupos, sociedades e gênero humano; por fim, que (d) embora a força de convencimento dos ditos religiosos resida precisamente no aspecto da realidade valorizada positivamente, este componente sem a dimensão da transcendência não é, por si só, suficiente para definir o dito nomeado religioso.

João Pessoa, 26 de julho de 2014.