sábado, 21 de agosto de 2021

Borboletas e flores



Por Erenildo João Carlos

Um certo dia, um destes que amanhece com o céu azul e ensolarado, notei algo, que sempre vi e vejo em situações similares, mas que nem sempre tenho consciência para observar, admirar e refletir sobre o que ele sugere e provoca. 

Vi borboletas e flores, ou melhor, borboletas voando sobre as flores entreabertas, recebendo a luz e o calor solar. Vi livres borboletas, voando de um lado para o outro, pousando nas flores. Vi flores, sendo tocadas e acariciadas por elas. Vi flores, com suas pétalas abertas para abraçá-las.

Isso aconteceu durante uma de minhas caminhadas matinais. Momento em que fui surpreendido com essa linda cena. Nem sempre comum, mas sempre possível em tais condições. Caminhadas que faço, não para ver e encontrar, intencionalmente, borboletas ou flores, mas para respirar mais fundo, oxigenar o cérebro, ativar a circulação sanguínea, movimentar as articulações, fazer pulsar mais rápido o coração, ao tempo que, aproveito, também, para refletir, pensar.

Se caminhar faz bem e é bom, caminho! Durante o caminhar, aproveito para pensar livremente. Sentir e experimentar o fluxo do pensamento circulando em mim, em minha mente, ao tempo em que o ar entra e sai, se põe dentro e fora de mim, ao ser inspirado e expirado. Um excelente exercício de dobrar-se sobre mim mesmo, de interiorização e exteriorização do ar e do pensamento, que flui livremente, sem foco e disperso, ou com foco e centrado. 

Um pensar, certamente, que, na maioria das vezes, se põe livre de a priori, pois se move e emerge a partir do acaso dos acontecimentos que aparecem para mim no intervalo, sempre finito, mas profundo e envolvente, da caminhada. Eventos que ora aparecem diante de mim, capturando o meu olhar, olfato, tato ou audição, como o caso das borboletas e das flores; ora que se colocam dentro de mim, inquietando-me, provocando-me, incitando-me a refletir sobre ideias, palavras, imagens, toques, sentimentos, desejos, sonhos, angustias, medos, escolhas, decisões a serem tomadas, tal como o caso da liberdade das borboletas.

Foi em uma dessas manhãs de sol e céu azul, que vi muitas borboletas voando de um lado para o outro; cortando o vento e a brisa que tocava singelamente meu rosto, meu corpo. Borboletas, diante de meus olhos e olhar, cruzando o espaço do céu, do entre folhas, árvores e flores. Borboletas voando sem rumo, sem sentido, sem direção, livres. Voos curtos, finitos, caóticos, incertos, fugazes e volúveis.

Nesse ínterim, algo chamou minha atenção. Notei que o voo das borboletas, mesmo graciosos e belos, por conta da delicadeza de suas asas e beleza da combinação de suas cores, não eram voos altos, velozes e ousados, como os feitos pelos pássaros, que também cruzavam o mesmo espaço. Eram voos tímidos, singelos, tranquilos. 

Contudo, o que de fato que me tocou, fazendo-me pensar e refletir, naquela manhã, foi o acontecimento de à cada voo, as borboletas pousarem em flores, diversas, diferentes e sequencialmente.  Isso fez-me pensar sobre a possibilidade de não haver preferência, gosto, escolha no ato de voar e pousar das borboletas. Observei que naturalmente elas pousavam, ficavam um tempo e, depois, iam embora, como se nada tivesse acontecido. Seguiam rumo à outra flor, aleatória e costumeiramente. 

Interessante, pensei, as borboletas pousavam em qualquer flor, pelo simples fato de uma flor ser uma flor! Que triste, pensei, ser borboleta, se assim for! Não seria triste, pensei, ser livre para voar um voo sem sentido, sem proposito? Essa é a liberdade das borboletas? Voar sem saber para onde ir, sem escolher em que flor pousar? Triste liberdade, pensei, se assim for!

A ação de voar todos os dias fez da liberdade uma rotina? Voar para aqui e para ali. Voar por voar não seria como se elas não fossem, de fato, livres, como se a liberdade, que aparenta ter, não existisse em seus voos? Voos naturais, não livres, impostos por uma espécie de destino, de sina, lançada pela mãe natureza às lindas, delicadas e maravilhosas borboletas. 

A escolha de voar e de pousar aparenta ser inexistente, aleatória e sem sentido! Voar por voar, pousar por pousar em uma flor qualquer não seria um acontecimento possível, produzido pelo acaso e pela rotina de voar e pousar gerado pela força da natureza? Assim, basta ser flor, para que a borboleta pouse. Que triste liberdade, pensei! Será que, para uma borboleta, qualquer flor é uma flor? Será que basta, para ela, que apareça uma flor bonitinha, sedutora para nela pousar? Ai, das borboletas, pensei! Elas não tem propósitos, pois pousam, selvagemente, por impulso incontido, incontrolável em busca de néctar! Assim sendo, pensei, como seria triste e vazia suas vidas, sem as flores! 

Ai das borboletas, se seus voos forem voos movidos pelo puro instinto em busca de néctar, nesse caso eles não seriam livres, pois não haveria a liberdade de voar e de escolher em qual flor pousar! Ai das borboletas, pensei, pois, se assim for, sua liberdade é uma ilusão, vez que seus voos livres resultariam da força da natureza, que lhe impõe a rotina de voar para aqui e para ali, de pousar, inexoravelmente, em qualquer flor, a qualquer momento. Nesse caso, o gesto de pousar e se deixar pousar não seria puramente selvagem, instintivo, movido pela necessidade incontrolável de saborear e se alimentar de néctar?

Será que esses voos são livres, se, de fato, a liberdade implica poder escolher, se encantar por esta ou aquela flor, em querer pousar ou não em uma flor singular, em poder dizer, enfim: essa foi a flor que escolhi? De dizer e fazer: nela, quero pousar, sentir seu cheiro, seu sabor, admirar suas cores e formas, apreciar sua leveza e doçura, deslizar meu toque em suas pétalas! Nesta flor quero pousar, pois foi ela que eu escolhi. Ela, eu quero sentir e me deixar sentir! 

Ai das borboletas se não fossem as flores! Triste, muito triste seria, mesmo sendo livres para voar, se elas não pudessem escolher em qual flor pousar e repousar: nessa, nesta ou naquela! 

No entremeio do movimento das borboletas que cruzavam o céu azul e ensolarado daquela manhã, do ar que penetrava e saia de mim, do suor que escorria em meu rosto e evaporava com o calor do sol, pensei: liberdade não seria a possibilidade de querer e poder voar ou não voar, de escolher pousar ou não pousar, nessa, nesta ou naquela flor? Liberdade não seria poder dizer, sentir e fazer: escolhi esta flor, nela quero pousar, com ela e nela quero ficar?

Caminhando um pouco mais, pensei, retomando a mesma ideia: ora, as borboletas não são livres se voam, simplesmente por que voam, daqui para a li, de lá para cá, de uma flor para outra, em busca de néctar, porque assim teria que ser. Se elas voam e pousam, porque isso é natural, destino ou sina, não são livres! 

Livres e felizes seriam, borboletas, homens e mulheres, que livres fossem para escolher conscientemente, se livres são, querem e podem. Ai dos homens e das mulheres, impossibilitados de decidir por si, assim como as borboletas que não são livres para voar, escolher e dizer por si mesmas: esse voo quero fazer, deste modo e não de outro; nesta flor quero pousar, deste jeito e não naquela!

Ah, se as borboletas pudessem dizer às flores: livremente sinto seu cheiro, seu gosto, sua leveza, sua doçura e sua beleza, pois lhe escolhi e você, a mim. Caminhando e pensando, imaginei a borboleta dizendo isso para a flor e a flor à borboleta, ao pôr-se, sorridente e feliz, de braços abertos para ela! Estou aqui, pouse em mim! Ai das borboletas, se não fossem as flores e das flores se não fossem as borboletas! 

Como são lindas e maravilhosas as borboletas e seus voos; as flores, suas cores, formas e cheiros; a liberdade de se tocarem espontânea e livremente, sentindo-se reciprocamente em meio a brisa e ao sol da manhã!

 

João Pessoa, 21 de agosto de 2021.

domingo, 1 de agosto de 2021

Relações de dominação

   

                                                                                               
  Por Erenildo João Carlos


Um dia desses, eu estava pensando sobre as coisas que nos cercam e as relações que estabelecemos com elas. 

Para vivermos, produzimos e consumimos coisas. Fazemos, compramos, vendemos, damos, recebemos, doamos coisas. Trabalhamos em troca de um salário para comprar coisas, para pagar a conta das coisas que compramos. Toda economia se move em torno disso. Produzir, reproduzir e consumir coisas. Erigimos lugares para elas. Em função dela vivemos, nos movemos e existimos. Em razão delas dirigimos nossas vidas, fixamos nossos sonhos, desenvolvemos nossos desejos, aprendemos a sentir e ter prazer, elaboramos nossos planos e projetos de vida. 

Em face do lugar e do status que as coisas têm em nossas vidas, torna-se óbvio que elas aparecem como sendo a fonte de nossa necessidade, segurança e conforto. A fonte da vida  e da felicidade. Nesse sentido, sem as coisas não teríamos dignidade, liberdade ou valor. Desse modo, tal como elas estão postas e dispostas, impostas e naturalizadas, elas ocupariam um lugar hierarquicamente superior as pessoas, vez que sem elas, nada seríamos. As coisas são; nós, gente, não somos. 

Ora, absorto nesse estado de consciência reflexiva, surpreendi-me com o fato, óbvio, porém nem sempre consciente, de que as coisas são coisas e de que nós, somos nós, isto é, gente, pessoa. 

Entretanto, ao pensar um pouquinho mais sobre isso, adentrando-me no complexo das relações entre nós e as coisas, notei uma contradição e profunda inversão de valor: a íntima relação que temos com as coisas, faz-nos ser, nessa condições, como elas, coisas. 

Ou seja, ao nos relacionarmos uns com os outros, ou conosco mesmos, em vez de nos tratarmos como pessoas, em certa medida e de certo modo, reproduzimos em nossas relações intra e interpessoal, o modo como nos relacionamos com as coisas. Coisificamo-nos, reciprocamente. Provavelmente, se encontre aí, nesse modo de relação social, a origem das múltiplas formas de relações de dominação. 

Ora, dominação é um tipo de relação que temos com as coisas. As coisas compramos, vendemos, produzimos, damos, trocamos, doamos, jogamos fora, quebramos, destruímos, deformamos, arranhamos, torcemos, chutamos, pisamos, desmontamos, manipulamos, brincamos, abandonamos, substituímos, colecionamos, oferecemos, consumimos, descartamos, usamos e abusamos. 

As coisas não sofrem, não se alegram, não sentem, não pensam, não falam, não refletem, não dialogam, não sabem, não tem consciência, não sorriem, não se sentem tristes, nem felizes, não sonham, não planejam, não cultivam, não cuidam, não amam, não choram, não se encantam, não se decepcionam, não nascem, não morrem, não sentem frio ou calor, nem fome ou cede. 

As coisas não precisam de abrigo, de serem amadas, de terapia. As coisas não precisam se alimentar, se confessar, estudar ou aprender. As coisas não lutam, não buscam sua libertação, pois não são nem se sentem oprimidas, dominadas, exploradas, expoliadas, traídas, envergonhadas, abandonadas, desencantadas, presas, assassinadas, discriminadas, assediadas. 

As coisas não são gente, não são pessoa,  por isso lhes falta a vontade de ser e viver, de lutar e se libertar, de sonhar e desejar, se sentir prazer e ser feliz, de exercer a liberdade e usar a inteligência para buscar alternativas que solucionem seus problemas, que resolvam e organizem suas bagunças. As coisas não se libertam, pois estão presas a seus donos.

Com efeito, talvez esteja aí a razão das pessoas estabelecerem relações que não são próprias das relações entre pessoas, vez que as relações de dominação são típicas das relações que estabelecemos com as coisas, ou das coisas com as coisas. 

Ora, se tratamos as pessoas como coisas, se nos vemos e nos sentimos como se coisas fossemos, cultivamos e transmitimos a ideia, desenvolvemos práticas, modos de vida, sentimentos e ideologias de que as pessoas podem ser propriedades e donas das outras. 

Nessas condições, certamente poderemos não nos sentir dominados, oprimidos, explorados, assediados, desrespeitados, desumanizados muito menos dominando o outro. Haveria, nessas condições, uma naturalização recíproca da aceitação da dominação. Uma espécie de acordo tácito, instituído socialmente, no qual estamos inseridos e aprendemos como normal, legitimo  e natural o ser dominador ou dominado.

Ora, se vivemos, existimos e nos movemos em relações sociais de dominação, não seria um desatino perguntarmos: Quem é seu dono? Você é dono de quem? 

Nessas condições, a liberdade é uma utopia e a libertação, uma necessidade de afirmação de que somos pessoa, não coisas. Nessas condições, de fato precisamos de uma 'pedagogia do oprimido', de 'práticas educativas para a liberdade' e de 'ações culturais para a libertação'. 

Precisamos cultivar relações próprias das típicas relações entre pessoas. Precisamos rejeitar a ideia de que as pessoas são coisas. Precisamos resistir, desconstruir às relações de dominação, seja ela qual for, seja ela onde estiver. Precisamos desnaturalizar o sentimento naturalizado da dominação.

Pessoa é pessoa. Coisa é coisa. Somos pessoa, não coisa. Gente é o que somos.

Não temos donos, nem somos donos de outras pessoas.


João Pessoa, 01 de agosto de 2021.