domingo, 15 de junho de 2014

DITOS RELIGIOSOS I





Por Erenildo João Carlos

O entendimento de que os ditos religiosos circulam em nossas conversas cotidianas e institucionais brasileira há muito tempo parece ponto pacífico. Se escavarmos nossa memória histórica e cultural e observarmos cuidadosamente os artefatos culturais produzidos desde a chegada dos portugueses ao território da Vera Cruz, podemos afirmar que, dos escritos de Pero Vaz de Caminha aos recentes pronunciamentos do Papa Francisco no Brasil, vivemos sob a égide de uma concepção de mundo judaico-cristã, tecida e constituída por uma complexa rede de ditos religiosos. 

Não serão diferentes nossos achados sobre os ditos religiosos se vasculharmos os registros e arquivos da lembrança milenar que contam a história dos nativos de nossa terra colonizada, se adentrarmos no legado de suas tradições, relações e signos culturais, repletos de formulações mágicos e místicos, imaginários e supersticiosos. Provavelmente, encontraremos a presença dos ditos religiosos, a exemplo dos que aprendemos, desde criança, por meio dos mitos do Saci Pererê, da Cuca, do Curupira, do Boitatá, da Comadre Fulozinha, do Boto, da Alamoa e do Lobisomem. 

Se procedermos assim também com relação às lendas, às orações, aos cantos, às narrativas oriundos da cultura afrodescendente, descobriremos achados preciosos sobre os ditos religiosos que integram a herança cultural dos negros que chegaram ao Brasil por meio do tráfico, da troca e da venda dos corpos de homens e mulheres negros, explorados nas lavoras, minas e fábrica, segregados nas senzalas, espoliados de sua dignidade humana no país, durante séculos, como força de trabalho, mercadoria e objeto do prazer sexual dos mercenários, senhores de engenho e seus feitores. Corpos negros de homens e mulheres apropriados e utilizados como coisa, utensílios domésticos de famílias abastadas da monarquia imperial e da república brasileira emergente.

Embora este percurso reflexivo arqueológico do dizer aponte uma possibilidade de investigação interessante a ser empreendida, é bem verdade que não precisamos ir tão longe em nossa memória histórica, cultural e social para encontrarmos os ditos religiosos. Assim como também não necessitamos estabelecer um vínculo necessário entre o dito religioso e supostas personalidades dividas, teologias e religiões institucionalizadas. Em outras palavras, não é uma condição necessária para a reflexão e investigação do dizer e dos ditos religiosos realizarmos um movimento de retorno ao passado ou mergulharmos na escuta de falas presentes, proferidas nos territórios das instituições especificamente religiosas, para encontrarmos o artefato cultural dos ditos religiosos. 

Em última análise, os ditos religiosos não estão circunscritos aos registros das escrituras sagradas, às falas dos líderes religiosos, nem às conversações produzidas em seus espaços institucionais. Eles impregnam falas de diferentes tipos e sujeitos. Eles aparecem e tecem conversas cotidianas. Eles são acionados para fundamentar hipóteses, teses, diálogos e debates acadêmicos. Eles são utilizados para definirem o conteúdo de mensagens políticas de candidatos e de governantes. Eles conferem legitimidade a vários interesses e concepções ideológicas. Eles aparecem como elemento constituintes do jogo da linguagem publicitária, midiática e cinematográfica que move a indústria cultural e o mercado mundial. 

Em suma, pelo fato dos ditos religiosos serem um artefato cultural da fala cotidiana, podem ser facilmente encontrados nas coisas ditas nas conversas cotidianas das pessoas. Basta ouvirmos a fala daqueles e daquelas com as quais convivemos em casa, no trabalho, na escola! Basta ligarmos a televisão e ouvirmos o conteúdo das falas dos apresentadores dos programas das diversas agências! Basta escolhermos e assistirmos um filme qualquer, lermos um livro de nossa preferência que identificaremos sua presença! Basta escutarmos com atenção as músicas tocadas no sistema de rádio, as narrativas de alguma partida de futebol, uma peça de teatro, ou simplesmente nos dispormos a ouvirmos as conversas ocasionais e casuais da pessoas em uma fila de supermercado ou de banco, numa mesa de bar ou restaurante, numa loja, num salão de beleza, numa caminhada matinal, nas praças e shoppings do bairro ou cidades que encontraremos os ditos religiosos demarcando sua presença nas falas, indicando modos de conceber, interpretar e entender, assinalando desejos e sonhos, significando as ações e práticas, valorando e atribuindo sentido as coisas e aos gestos mais simples do dia-a-dia dos falantes. 

Tudo isto pode nos fazer refletir sobre a seguinte questão: se os ditos religiosos fazem parte da ordem do dia de nossas falas e conversas, se eles são tão produtivos e relevantes em nossa cultura, o que eles têm de específico em seu modo de existência?

domingo, 1 de junho de 2014

DITOS SECTÁRIOS II




Erenildo João Carlos

Ao se ouvir cuidadosamente as falas de interlocutores que conversam sobre religião, política, futebol e outros temas culturalmente relevantes no cotidiano, encontramos nas particularidades destas conversas e ditos, um modo de dizer comum, regular e geral, constituídos por uma série de elementos discursivos articulados, postos em funcionamento de uma maneira determinada. Neste processo de escavação, identifiquei a autorreferencialidade, o fechamento, a autodefesa, a autoafirmação e a autoconservação, como os principais constituintes do dizer sectário.

Parece-me que o modo singular de dispor as coisas que são ditas a partir destes cinco elementos evidencia uma espécie de regra, de modo de fazer existir as coisas ditas, de significá-la, de desencadeá-la, de relacioná-la no desenrolar da conversação. Regras não imediatamente audíveis, não aparentemente evidentes à consciência dos falantes e ouvintes concretos, mas presentes, postas e disponíveis em suas falas, operando como condições necessárias à formulação de uma série de ditos possíveis e específicos, que são acionados e colocados em circulação no curso da conversa. Em seu conjunto, estes elementos compõe o modo de dizer, aqui, nomeado de sectário.

Ao analisar os constituintes deste dizer, verifica-se que a fala sectária apresenta um modo de dizer que conduz o deslocamento da conversa em torno de pontos considerados centrais, com uma conotação fortemente acentuada pela autorreferência, a partir da qual a fala comunicada deverá convergir: o que se crê, se pensa, se deseja, se interessa, se prefere... Esta convergência instituída cria um campo de possibilidades, um território demarcado por limites e fronteiras, que determinam, ao fim e ao cabo, o aparecimento do como, do quando, do onde e do que deve ser dito no decorrer da conversa.

Com efeito, a autorreferencialidade define o conteúdo e a forma do dizer sectário. Em outras palavras, é no interior do campo de convergência autorrefenciado que a conversa instaurada escolhe seus ditos, que os pronunciamentos são tecidos e sustentados, que a argumentação deve ser construída e fundamentada, que se selecionam as alternativas do que se pretende dizer, do que pode ser dito, do que é permitido e adequado, do que é pertinente e relevante, do que é certo, correto e verdadeiro. O movimento realizado no espaço deste território determina a origem das alternativas possíveis de idas e vindas, de aproximações e distanciamentos, de esquecimentos e lembranças, de fugas e retornos, de subidas e decidas, de saídas e entradas, de desvios e contatos marcados pela fronteira do mesmo.

A conversação autorreferenciada evidencia uma trajetória movediça, indeterminada a priori. Em seu acontecer, ela pode ser circular e amena, linear e tensionada; pode ser abstrata e profunda, concreta e superficial. O fato primordial consiste, portanto, na escolha de estratégias adequadas, cuja meta é fazer com que a conversa possa sempre convergir para o ponto que se quer, que contenha seu próprio fundamento e suas próprias condições de existência. Que tenha um ´em si´ capaz de conferir ´a si´ o significado e a legitimidade necessários às coisas a serem ditas sobre ´si´. 

Nota-se, assim, que o dizer sectário configura-se por uma ordem de fala fechada em torno ´de si´, alimentada ´de si´, voltado ´para si´. Como um dizer que se autossegrega, confinado e encapsulado ´em si´, que simplesmente é, pelo fato de ser o que é. Este modo de ser autorreferenciado e fechado do dizer sectário desenvolve formas de autodefesa e de auto-afirmação, tendo em vista sua autoconservação, a exemplo do cuidado com a coerência, com a coesão e com a não contradição das coisas ditas.

Devido a impossibilidade social e cultural do fechamento e da autossegregação absoluta, o ´em si´ do sectário é confrontado com o ´em si´ do outro, do diferente, do estranho; os ditos e dizeres sectários entram em conflito com os ditos e dizeres dialógicos, ou seja, com aquele dizer que confere visibilidade a existência de múltiplos e diferentes modos de pensar, crer, desejar, preferir, perceber, imaginar, saber, entender, viver e ser, presentes nas falas cotidianas, nas conversações instauradas em torno dos temas problematizados, seja pela casualidade ou seja pela intencionalidade dos encontros que acontecem entre os interlocutores que convivem nos diversos espaços de conversação existentes na sociedade.

O encontro com ´o si do outro´, diferente do ´si do sectário´, põe em risco o equilíbrio e a ordem vigente dos ditos sectários. Ao sentir sua concepção de mundo ameaçada pelo outro, o dizer sectário coloca-se em pé de guerra, parte para a defesa de seus paradigmas. Fazendo da conversa com o outro, uma oportunidade de afirmação radical ´de si´, de auto defesa e de autoafirmação do campo de convergência que autorreferência.

Parece-me que o fato de nos encontramos imersos na cultura hegemônica do sectarismo aponta uma possível resposta para a constatação da existência de conversas cotidianas tecidas pelo signo do desencontro, do confronto e do conflito, marcada pelo viés de uma dialética da interdição, que bloqueiam o exercício do diálogo e do agir comunicativo edificante entre os diferentes, orientados pelo parâmetro do entendimento, da boa vizinhança e do desenvolvimento ético comum, ao abordarem temas culturais, tão importantes para o povo brasileiro, como o da religião, da política do futebol.