Por Erenildo João Carlos
O entendimento de que os ditos religiosos circulam em nossas conversas cotidianas e institucionais brasileira há muito tempo parece ponto pacífico. Se escavarmos nossa memória histórica e cultural e observarmos cuidadosamente os artefatos culturais produzidos desde a chegada dos portugueses ao território da Vera Cruz, podemos afirmar que, dos escritos de Pero Vaz de Caminha aos recentes pronunciamentos do Papa Francisco no Brasil, vivemos sob a égide de uma concepção de mundo judaico-cristã, tecida e constituída por uma complexa rede de ditos religiosos.
Não serão diferentes nossos achados sobre os ditos religiosos se vasculharmos os registros e arquivos da lembrança milenar que contam a história dos nativos de nossa terra colonizada, se adentrarmos no legado de suas tradições, relações e signos culturais, repletos de formulações mágicos e místicos, imaginários e supersticiosos. Provavelmente, encontraremos a presença dos ditos religiosos, a exemplo dos que aprendemos, desde criança, por meio dos mitos do Saci Pererê, da Cuca, do Curupira, do Boitatá, da Comadre Fulozinha, do Boto, da Alamoa e do Lobisomem.
Se procedermos assim também com relação às lendas, às orações, aos cantos, às narrativas oriundos da cultura afrodescendente, descobriremos achados preciosos sobre os ditos religiosos que integram a herança cultural dos negros que chegaram ao Brasil por meio do tráfico, da troca e da venda dos corpos de homens e mulheres negros, explorados nas lavoras, minas e fábrica, segregados nas senzalas, espoliados de sua dignidade humana no país, durante séculos, como força de trabalho, mercadoria e objeto do prazer sexual dos mercenários, senhores de engenho e seus feitores. Corpos negros de homens e mulheres apropriados e utilizados como coisa, utensílios domésticos de famílias abastadas da monarquia imperial e da república brasileira emergente.
Embora este percurso reflexivo arqueológico do dizer aponte uma possibilidade de investigação interessante a ser empreendida, é bem verdade que não precisamos ir tão longe em nossa memória histórica, cultural e social para encontrarmos os ditos religiosos. Assim como também não necessitamos estabelecer um vínculo necessário entre o dito religioso e supostas personalidades dividas, teologias e religiões institucionalizadas. Em outras palavras, não é uma condição necessária para a reflexão e investigação do dizer e dos ditos religiosos realizarmos um movimento de retorno ao passado ou mergulharmos na escuta de falas presentes, proferidas nos territórios das instituições especificamente religiosas, para encontrarmos o artefato cultural dos ditos religiosos.
Em última análise, os ditos religiosos não estão circunscritos aos registros das escrituras sagradas, às falas dos líderes religiosos, nem às conversações produzidas em seus espaços institucionais. Eles impregnam falas de diferentes tipos e sujeitos. Eles aparecem e tecem conversas cotidianas. Eles são acionados para fundamentar hipóteses, teses, diálogos e debates acadêmicos. Eles são utilizados para definirem o conteúdo de mensagens políticas de candidatos e de governantes. Eles conferem legitimidade a vários interesses e concepções ideológicas. Eles aparecem como elemento constituintes do jogo da linguagem publicitária, midiática e cinematográfica que move a indústria cultural e o mercado mundial.
Em suma, pelo fato dos ditos religiosos serem um artefato cultural da fala cotidiana, podem ser facilmente encontrados nas coisas ditas nas conversas cotidianas das pessoas. Basta ouvirmos a fala daqueles e daquelas com as quais convivemos em casa, no trabalho, na escola! Basta ligarmos a televisão e ouvirmos o conteúdo das falas dos apresentadores dos programas das diversas agências! Basta escolhermos e assistirmos um filme qualquer, lermos um livro de nossa preferência que identificaremos sua presença! Basta escutarmos com atenção as músicas tocadas no sistema de rádio, as narrativas de alguma partida de futebol, uma peça de teatro, ou simplesmente nos dispormos a ouvirmos as conversas ocasionais e casuais da pessoas em uma fila de supermercado ou de banco, numa mesa de bar ou restaurante, numa loja, num salão de beleza, numa caminhada matinal, nas praças e shoppings do bairro ou cidades que encontraremos os ditos religiosos demarcando sua presença nas falas, indicando modos de conceber, interpretar e entender, assinalando desejos e sonhos, significando as ações e práticas, valorando e atribuindo sentido as coisas e aos gestos mais simples do dia-a-dia dos falantes.
Tudo isto pode nos fazer refletir sobre a seguinte questão: se os ditos religiosos fazem parte da ordem do dia de nossas falas e conversas, se eles são tão produtivos e relevantes em nossa cultura, o que eles têm de específico em seu modo de existência?