domingo, 1 de junho de 2014

DITOS SECTÁRIOS II




Erenildo João Carlos

Ao se ouvir cuidadosamente as falas de interlocutores que conversam sobre religião, política, futebol e outros temas culturalmente relevantes no cotidiano, encontramos nas particularidades destas conversas e ditos, um modo de dizer comum, regular e geral, constituídos por uma série de elementos discursivos articulados, postos em funcionamento de uma maneira determinada. Neste processo de escavação, identifiquei a autorreferencialidade, o fechamento, a autodefesa, a autoafirmação e a autoconservação, como os principais constituintes do dizer sectário.

Parece-me que o modo singular de dispor as coisas que são ditas a partir destes cinco elementos evidencia uma espécie de regra, de modo de fazer existir as coisas ditas, de significá-la, de desencadeá-la, de relacioná-la no desenrolar da conversação. Regras não imediatamente audíveis, não aparentemente evidentes à consciência dos falantes e ouvintes concretos, mas presentes, postas e disponíveis em suas falas, operando como condições necessárias à formulação de uma série de ditos possíveis e específicos, que são acionados e colocados em circulação no curso da conversa. Em seu conjunto, estes elementos compõe o modo de dizer, aqui, nomeado de sectário.

Ao analisar os constituintes deste dizer, verifica-se que a fala sectária apresenta um modo de dizer que conduz o deslocamento da conversa em torno de pontos considerados centrais, com uma conotação fortemente acentuada pela autorreferência, a partir da qual a fala comunicada deverá convergir: o que se crê, se pensa, se deseja, se interessa, se prefere... Esta convergência instituída cria um campo de possibilidades, um território demarcado por limites e fronteiras, que determinam, ao fim e ao cabo, o aparecimento do como, do quando, do onde e do que deve ser dito no decorrer da conversa.

Com efeito, a autorreferencialidade define o conteúdo e a forma do dizer sectário. Em outras palavras, é no interior do campo de convergência autorrefenciado que a conversa instaurada escolhe seus ditos, que os pronunciamentos são tecidos e sustentados, que a argumentação deve ser construída e fundamentada, que se selecionam as alternativas do que se pretende dizer, do que pode ser dito, do que é permitido e adequado, do que é pertinente e relevante, do que é certo, correto e verdadeiro. O movimento realizado no espaço deste território determina a origem das alternativas possíveis de idas e vindas, de aproximações e distanciamentos, de esquecimentos e lembranças, de fugas e retornos, de subidas e decidas, de saídas e entradas, de desvios e contatos marcados pela fronteira do mesmo.

A conversação autorreferenciada evidencia uma trajetória movediça, indeterminada a priori. Em seu acontecer, ela pode ser circular e amena, linear e tensionada; pode ser abstrata e profunda, concreta e superficial. O fato primordial consiste, portanto, na escolha de estratégias adequadas, cuja meta é fazer com que a conversa possa sempre convergir para o ponto que se quer, que contenha seu próprio fundamento e suas próprias condições de existência. Que tenha um ´em si´ capaz de conferir ´a si´ o significado e a legitimidade necessários às coisas a serem ditas sobre ´si´. 

Nota-se, assim, que o dizer sectário configura-se por uma ordem de fala fechada em torno ´de si´, alimentada ´de si´, voltado ´para si´. Como um dizer que se autossegrega, confinado e encapsulado ´em si´, que simplesmente é, pelo fato de ser o que é. Este modo de ser autorreferenciado e fechado do dizer sectário desenvolve formas de autodefesa e de auto-afirmação, tendo em vista sua autoconservação, a exemplo do cuidado com a coerência, com a coesão e com a não contradição das coisas ditas.

Devido a impossibilidade social e cultural do fechamento e da autossegregação absoluta, o ´em si´ do sectário é confrontado com o ´em si´ do outro, do diferente, do estranho; os ditos e dizeres sectários entram em conflito com os ditos e dizeres dialógicos, ou seja, com aquele dizer que confere visibilidade a existência de múltiplos e diferentes modos de pensar, crer, desejar, preferir, perceber, imaginar, saber, entender, viver e ser, presentes nas falas cotidianas, nas conversações instauradas em torno dos temas problematizados, seja pela casualidade ou seja pela intencionalidade dos encontros que acontecem entre os interlocutores que convivem nos diversos espaços de conversação existentes na sociedade.

O encontro com ´o si do outro´, diferente do ´si do sectário´, põe em risco o equilíbrio e a ordem vigente dos ditos sectários. Ao sentir sua concepção de mundo ameaçada pelo outro, o dizer sectário coloca-se em pé de guerra, parte para a defesa de seus paradigmas. Fazendo da conversa com o outro, uma oportunidade de afirmação radical ´de si´, de auto defesa e de autoafirmação do campo de convergência que autorreferência.

Parece-me que o fato de nos encontramos imersos na cultura hegemônica do sectarismo aponta uma possível resposta para a constatação da existência de conversas cotidianas tecidas pelo signo do desencontro, do confronto e do conflito, marcada pelo viés de uma dialética da interdição, que bloqueiam o exercício do diálogo e do agir comunicativo edificante entre os diferentes, orientados pelo parâmetro do entendimento, da boa vizinhança e do desenvolvimento ético comum, ao abordarem temas culturais, tão importantes para o povo brasileiro, como o da religião, da política do futebol.