quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

POR UMA ÉTICA DO DIZER





Por Erenildo J. C.

É senso comum, o saber de que vivemos imersos numa cultura oral, em que a fala se configura como um artefato necessário à sociabilidade dos indivíduos e grupos sociais. Antes da escrita, surgiu a fala. No território da civilização da palavra, dizer se tornou um dispositivo de comunicação imprescindível, que põe um indivíduo diante do outro, que expressa à consciência que se tem sobre algo, que confere visibilidade a intenções, desejos, interesses, sonhos, valores, convicções, saberes...
Nesse cenário, dizer é uma maneira de propagar, instituir e manter viva a memória dos acontecimentos, das histórias, das ideologias e das concepções de mundo, tidas como legítimas. Nesse sentido, o dizer, como dispositivo de comunicação, suscita, pelo menos, três ordens de questões sobre o assunto: a) o dito como expressão da consciência que se tem sobre algo; b) o dito como uma representação dos fatos existentes; e c) o dito como anuncio do que se fez, faz ou fará. Reflitamos!
Questão (a): ‘o dito como expressão da consciência que se tem sobre algo’. Entendemos, aqui, consciência como o conjunto de sensações, percepções, ideias, representações, sentimentos, saberes, convicções, valores, desejos, preferências, sonhos, metas e concepções. Quando a consciência que temos sobre algo não é dita, permanece no plano da consciência, invisível para o outro. Ao nos referirmos sobre ‘o dito como expressão da consciência que se tem sobre algo’ estamos falando sobre um gênero de consciência conhecida, pelo fato de ser comunicada. Nesse caso, o dito é considerado como uma via de conhecimento e de concretização da consciência, um modo de compartilhamento. Nesse dito, a consciência se expressa, se põe, se coloca, ganha existência para o outro.
Questão (b): ‘o dito como uma representação dos fatos existentes’. Compreendemos, aqui, os fatos existentes como tudo que existe na natureza e na sociedade. Quando as coisas ditas conseguem capturar os acontecimentos, os processos, as relações, os aspectos e as dimensões da realidade existente, sejam da natureza ou da sociedade, de modo que ao falar algo sobre eles, dizem algo que, de fato, nos ajuda a conhecê-los e entendê-los, estamos diante de um ‘dito como uma representação dos fatos existentes’. Nesse dito, o mundo é expresso, é posto, é colocado, ganha existência para os indivíduos, em geral.
Questão (c): ‘o dito como anuncio do que se fez, faz ou fará’. Concebemos, aqui, ações como atos concretos, intencionais ou não, efetivados por indivíduos, sujeitos ou instituições sociais determinados. Escrevemos o cotidiano com nossas ações, passadas e presentes, que, por sua vez, desencadeiam outras ações, que se entrelaçam e tecem a complexidade do mundo em que vivemos. Nosso mundo, nossa história, nossa cultura é feita, gerada, produzida, tecida de atos simples, singulares e concretos. Quando as coisas ditas registram as ações passadas, presentes ou futuras dos indivíduos, sujeitos ou instituições, conferindo-lhes visibilidade e tornando-as conhecidas, estamos diante de um ‘dito como anuncio do que se fez, faz ou fará’. Nesse dito, os atos configuram as falas. Os feitos são ditos, postos, colocados, ganham existência intersubjetiva.
Dizer, portanto, é uma ação que produz algo concomitantemente no campo da linguagem, do saber e da sociabilidade. Pensar os ditos, que circulam e se proliferam no cotidiano, exige uma reflexão sobre a necessidade de uma ética do dizer: que ao dizermos algo sobre alguma coisa para alguém, tenhamos a responsabilidade e o compromisso social de que nossos ditos sejam sinceros, verdadeiros e edificantes.

João Pessoa, 04 de janeiro de 2012.

BEBER, FUMAR E JOGAR!



Por Erenildo J. C.

Certo dia, em uma das inúmeras conversas que tenho com meus filhos, Lenildo e Lívia, surgiu uma pergunta: pai, por que você não bebe, não fuma e não joga? Confesso que fui pego de surpresa e fiquei sem saber o que dizer. Na ocasião, Lenildo tinha treze anos e Lívia, oito. Não respondi a indagação. Ademais, a dispersão e justaposição de outros assuntos, tratados naquele momento, sufocaram o diálogo e a reflexão proporcionada pela questão formulada. O tempo passou! De repente, nesses dias, sem mais sem menos, lembrei-me dela e resolvi respondê-la. Atualmente, Lenildo vai fazer quinze anos e Lívia, dez. Um ótimo momento para retomar e refletir sobre a questão.
Por que não bebo, não fumo e não jogo? Será que esse estilo de vida resulta de uma premissa moral, religiosa ou epistemológica? Resulta de uma educação familiar, religiosa e escolar que me proporcionou a possibilidade de ter um estilo de vida saudável? Li sobre o assunto e descobri que não vale apena beber, fumar e jogar? Enfim, qual é o fundamento dessa decisão?
Para entender minha posição é necessário voltar um pouco no tempo. Tomei essa decisão, por volta de 1975, no intercurso do fim de minha infância e prenúncio da adolescência. Mais ou menos a idade dos meus filhos, hoje. Diga-se de passagem, sábia decisão de uma criança que aprendeu, desde a infância, a pensar a partir de sua própria experiência! Assinalo experiência, porque as conclusões e a decisão que dela resultou, não foram baseadas em um juízo de valor moral, mas na observação e reflexão dos efeitos negativos desses artefatos no cotidiano das pessoas com quem convivia! Decisão difícil, sem dúvida, para uma criança submersa em um mundo que erigiu a bebida, o cigarro e o jogo como um artefato relevante de sua lógica cultural!
Vi e compreendi, quando criança, a presença social da bebida, do fumo e do jogo! Sua presença em tempos e lugares diversos: em casa, na igreja, no trabalho, nas festas, na rua… Meu pai e meus irmãos bebiam, fumavam e jogavam! Minha mãe, não! Vários amigos e colegas bebiam, fumavam e/ou jogavam! Inúmeros vizinhos bebiam, fumavam e/ou jogavam! Parte significativa do tempo e dos recursos dessas pessoas destinava-se ao usufruto desses bens culturais.
Vi que onde duas ou mais pessoas estavam reunidas, com o intuito de celebrar o nascimento de uma nova vida; de exaltar uma conquista, uma meta alcançada ou um sonho realizado; de comemorar um nascimento, um casamento, o natal ou o fim de ano; de se encontrar para trocar ideias, avaliar, planejar o futuro; ou, simplesmente, de jogar conversa fora, pelo simples prazer de se sentir bem com o outro; ali se faziam presentes à bebida, o fumo e o jogo!
Lembro que meu pai bebia dias seguidos! Bebia tanto que imaginava ver assombrações! Às vezes ele passava dias acamado! Em uma de suas crises pós-embriaguês, teve um sonho que o fez parar de beber. Sonhou com um lugar seco, árido, deserto. Por onde caminhava sem destino e sem sentido! Quanto mais andava, mais a paisagem desértica se consolidava. De repente, se deparou com uma arvore caída, seca! Ao se aproximar e olhar em seu interior viu um ramo de planta, verdinho, crescendo em meio à morbidez do toco seco e da aridez do ambiente! Impactado pelo que sonhou, acordou… suado, com o coração batendo! Parou e respirou fundo! Relembrando o sonho, refletiu sobre seu conteúdo e concluiu, comparativamente, que a sua vida era a paisagem árida, que ele era o tronco seco e que eu era a ramo verde, que despontava no seio do tronco seco, caído e evanescente. Após a reflexão decidiu não mais beber, pois, a partir de então, desejava cuidar e acompanhar o crescimento do ramo verde dos seus sonhos: eu. Nessa época, eu deveria ter uns seis anos. Não me lembro desse fato, ouvi meus pais contarem!
Meu pai parou de beber, mas não de fumar e de jogar! Morreu em 1978, época de copa do mundo, sem ter enriquecido com suas apostas na loteria, no jogo de bicho e na loto. Laudo médico: edema pulmonar. Minha mãe morreu em 2005, sem nunca ter fumado e bebido. Laudo médico: câncer no pulmão! Ela era fumante passiva! Aspirou, durante muitos anos, a fumaça dos tragos de cigarro do meu pai! Um dos preços da convivência com um fumante!
Quantos morrem de câncer e edema pulmonar gerado pelo cigarro? Quantos morrem de cirrose por conta de ter submetido seu fígado ao álcool durante muitos anos? Quantos lares são destruídos e casamentos são desfeitos por conta do uso de bebidas e outras drogas? Quantos acidentes de trânsito e violências domésticas são produzidos cotidianamente por conta do consumo da bebida? Quantos adolescentes e jovens morreram em festas, por conta de brigas geradas pelo consumo de álcool e outras drogas? Quantos sentiram a necessidade de substituírem a bebida e o cigarro por drogas mais fortes, gerando, assim, dependência química mais serias!
E o que dizer dos jogos de azares como forma de lazer, como esperança de uma nova vida e aposta de um futuro melhor; como artefato cultural de consumo e como estratégia de reprodução do capital! O jogo de azar, assim como a bebida e o fumo se ramificaram de tal forma que teceram uma rede cultural complexa a ponto de penetrarem e se instalarem nos lares, nas igrejas, no mundo do trabalho, no entretenimento, na subjetividade e na afetividade dos indivíduos singulares!
Essa atmosfera cultural se apresentava, desde a mais tenra idade, como modelo a ser seguido e aprendido ao longo da vida. Ela fazia do beber, do fumar e do jogar um exemplo a ser seguido. O adensamento dessa presença se fazia sentir no uso da bebida, da droga e do jogo não somente como fontes de prazer e de sociabilidade, mas também como estratégias de fuga da realidade. O interessante é que, quando muitos se sentem tristes, vazios, em crise, aperreados, por alguma razão, uma das possibilidades que vislumbram de enfrentamento da situação se expressa justamente na busca da bebida, do fumo e/ou do jogo como refúgio, conforto e solução do problema vivido!
Os efeitos desses artefatos adquiriram um novo status, uma nova função sociocultural, a de serem terapêuticos e redentores! Em outras palavras, parecem entidades divinas portadoras de uma espécie de poder capaz de proporcionar o divã, o nirvana, a libertação. Embriagados, contemplando a fumaça que esvanece no ar, sentido os efeitos neurais do álcool e da nicotina, encantados com os desafios, as expectativas de vitória e os simulacros das apostas, o consumidor fiel imagina que seus problemas desapareceram, foram resolvidos!
Hoje, tenho a impressão de que esses três artefatos culturais foram erigidos como uma espécie de símbolo da sociabilidade contemporânea! Capazes de mediarem às relações intersubjetivas entre os indivíduos singulares, os grupos e as classes sociais! Ícones transversais que perpassam vários lugares sociais, vários segmentos sociais e se instituem como parâmetros de uma­ moralidade que captura afetos, que estrutura valores, consolida interesses sociopolíticos e mercadológicos e institui práticas locais, nacionais e internacionais! O valor simbólico dessa tríade, associado ao prazer ou a dor consolida  mundialmente o fenômeno.
O cotidiano é testemunha de tudo isso! O ato de ver e de observar esses acontecimentos foi uma estratégia inconsciente utilizada para saber e decidir! Não li sobre o assunto, pois ainda não tinha despertado a curiosidade epistemológica para conhecê-lo, para saber sobre as histórias, os efeitos na saúde das pessoas, as implicações familiares e sociais dessa tríade cultural! O mundo da vida foi meu primeiro livro, minha fonte de conhecimento! Vi, antes de me interessar em ler! Decidi a partir do que vi!
Como fugir de seus enlaces, de suas amarras, se nos encontramos imersos nessa atmosfera cultural? Como não se deixar seduzir por seus cantos, encantos e promessas de autoafirmação, de reconhecimento, de realização pessoal e êxito social? Como escapar, renunciar, se esquivar do consumo, da tradição do álcool, do fumo e das apostas nos jogos de azar? Confesso que não sei! Cada caso é um caso! Parece-me que não há resposta única para perguntas tão complexas e diversas! Penso que cada um deve buscar a resposta mais adequada para cada caso que quiser conhecer, que desejar compreender e que aspirar descobrir alternativas de encaminhamento e enfrentamento.
Contento-me, aqui, por hora, em responder a pergunta formulada por meus filhos “pai, por que você não bebe, não fuma e não joga?”, com a seguinte afirmativa: quando criança, eu vi que não era bom, por isso decidi não fazer. Desde então, não bebo, não fumo e não jogo! Hoje, reconheço a sabedoria e a relevância dessa decisão e os efeitos positivos que ela gerou em minha vida!

João Pessoa, 29 dezembro de 2012.


MEMÓRIAS



Por Erenildo J. C.

É sempre bom relembrarmos o passado…, penso!
Percorrermos suas trilhas como quem passeia ao ar livre e admira a paisagem, 
seu em torno, seu curso e movimento! 

É verdade, nem sempre é bom revisitar o passado…, retrunco!

Percorrer seus caminhos, pode nos trazer lembranças ruins! 
Vielas, becos, avenidas, ruas, labirintos… 

Talvez, às vezes seja bom; outras vezes, não… imagino! Entretanto, é necessário e sempre possível um encontro com o passado!

Aprendi a olhar para ele, enfrentá-lo e percorrê-lo! 

Aprendi a vê-lo com um olhar centrado em um sentido: o de quem procura…! 

O olhar de quem deseja e busca entender o presente! 

Talvez seja bom! 
A procura curiosa, o desejo inteligente, a superação da ignorância! 

Para quem deseja aprender e saber a memória é, inegavelmente, uma fonte inesgotável! 
Vê no passado uma fonte de aprendizagem e sabedoria! 

Seja curioso, reflita para entender! 
À luz do que se foi, procure entender o que permanece e o que mudou! 

A memória é fonte para quem se deixa encantar com o que encontra! 

Nesse sentido, é necessário vasculhar a memória e reviver lembranças; 
reler o álbum da vida, da infância, da juventude e da adultez. 

Revisite a história… 
Séries de acontecimentos, situações, pessoas, relações que se entrelaçam e nos constituem! 
Enredo de um passado possível, que produz a história presente! 

Talvez, em meio às imagens contidas na memória, aos achados encontrados e descobertos, possamos entender os enlaces do presente, desatar alguns nós, ressignificar o presente e dimensionar o futuro. 

O que é o presente? 
Uma síntese das múltiplas determinações possíveis, constituídas a partir do entrelaçamento dos acontecimentos passados. 
E o futuro? 
Algo a ser tecido, hoje, a partir de ontem! 

          João Pessoa, 28 de dezembro de 2012.