Por Erenildo J. C.
Certo dia, em uma das
inúmeras conversas que tenho com meus filhos, Lenildo e Lívia, surgiu uma
pergunta: pai, por que você não bebe, não fuma e não joga? Confesso que fui
pego de surpresa e fiquei sem saber o que dizer. Na ocasião, Lenildo tinha
treze anos e Lívia, oito. Não respondi a indagação. Ademais, a dispersão e
justaposição de outros assuntos, tratados naquele momento, sufocaram o diálogo
e a reflexão proporcionada pela questão formulada. O tempo passou! De repente,
nesses dias, sem mais sem menos, lembrei-me dela e resolvi respondê-la.
Atualmente, Lenildo vai fazer quinze anos e Lívia, dez. Um ótimo momento para
retomar e refletir sobre a questão.
Por que não bebo, não fumo e
não jogo? Será que esse estilo de vida resulta de uma premissa moral, religiosa
ou epistemológica? Resulta de uma educação familiar, religiosa e escolar que me
proporcionou a possibilidade de ter um estilo de vida saudável? Li sobre o
assunto e descobri que não vale apena beber, fumar e jogar? Enfim, qual é o
fundamento dessa decisão?
Para entender minha posição
é necessário voltar um pouco no tempo. Tomei essa decisão, por volta de 1975,
no intercurso do fim de minha infância e prenúncio da adolescência. Mais ou
menos a idade dos meus filhos, hoje. Diga-se de passagem, sábia decisão de uma
criança que aprendeu, desde a infância, a pensar a partir de sua própria
experiência! Assinalo experiência, porque as conclusões e a decisão que dela
resultou, não foram baseadas em um juízo de valor moral, mas na observação e
reflexão dos efeitos negativos desses artefatos no cotidiano das pessoas com
quem convivia! Decisão difícil, sem dúvida, para uma criança submersa em um
mundo que erigiu a bebida, o cigarro e o jogo como um artefato relevante de sua
lógica cultural!
Vi e compreendi, quando
criança, a presença social da bebida, do fumo e do jogo! Sua presença em tempos
e lugares diversos: em casa, na igreja, no trabalho, nas festas, na rua… Meu
pai e meus irmãos bebiam, fumavam e jogavam! Minha mãe, não! Vários amigos e
colegas bebiam, fumavam e/ou jogavam! Inúmeros vizinhos bebiam, fumavam e/ou
jogavam! Parte significativa do tempo e dos recursos dessas pessoas
destinava-se ao usufruto desses bens culturais.
Vi que onde duas ou mais
pessoas estavam reunidas, com o intuito de celebrar o nascimento de uma nova
vida; de exaltar uma conquista, uma meta alcançada ou um sonho realizado; de
comemorar um nascimento, um casamento, o natal ou o fim de ano; de se encontrar
para trocar ideias, avaliar, planejar o futuro; ou, simplesmente, de jogar
conversa fora, pelo simples prazer de se sentir bem com o outro; ali se faziam
presentes à bebida, o fumo e o jogo!
Lembro que meu pai bebia
dias seguidos! Bebia tanto que imaginava ver assombrações! Às vezes ele passava
dias acamado! Em uma de suas crises pós-embriaguês, teve um sonho que o fez
parar de beber. Sonhou com um lugar seco, árido, deserto. Por onde caminhava
sem destino e sem sentido! Quanto mais andava, mais a paisagem desértica se
consolidava. De repente, se deparou com uma arvore caída, seca! Ao se aproximar
e olhar em seu interior viu um ramo de planta, verdinho, crescendo em meio à
morbidez do toco seco e da aridez do ambiente! Impactado pelo que sonhou,
acordou… suado, com o coração batendo! Parou e respirou fundo! Relembrando o
sonho, refletiu sobre seu conteúdo e concluiu, comparativamente, que a sua vida
era a paisagem árida, que ele era o tronco seco e que eu era a ramo verde, que
despontava no seio do tronco seco, caído e evanescente. Após a reflexão decidiu
não mais beber, pois, a partir de então, desejava cuidar e acompanhar o
crescimento do ramo verde dos seus sonhos: eu. Nessa época, eu deveria ter uns
seis anos. Não me lembro desse fato, ouvi meus pais contarem!
Meu pai parou de beber, mas
não de fumar e de jogar! Morreu em 1978, época de copa do mundo, sem ter
enriquecido com suas apostas na loteria, no jogo de bicho e na loto. Laudo
médico: edema pulmonar. Minha mãe morreu em 2005, sem nunca ter fumado e
bebido. Laudo médico: câncer no pulmão! Ela era fumante passiva! Aspirou,
durante muitos anos, a fumaça dos tragos de cigarro do meu pai! Um dos preços
da convivência com um fumante!
Quantos morrem de câncer e
edema pulmonar gerado pelo cigarro? Quantos morrem de cirrose por conta de ter
submetido seu fígado ao álcool durante muitos anos? Quantos lares são
destruídos e casamentos são desfeitos por conta do uso de bebidas e outras
drogas? Quantos acidentes de trânsito e violências domésticas são produzidos
cotidianamente por conta do consumo da bebida? Quantos adolescentes e jovens
morreram em festas, por conta de brigas geradas pelo consumo de álcool e outras
drogas? Quantos sentiram a necessidade de substituírem a bebida e o cigarro por
drogas mais fortes, gerando, assim, dependência química mais serias!
E o que dizer dos jogos de
azares como forma de lazer, como esperança de uma nova vida e aposta de um
futuro melhor; como artefato cultural de consumo e como estratégia de
reprodução do capital! O jogo de azar, assim como a bebida e o fumo se ramificaram
de tal forma que teceram uma rede cultural complexa a ponto de penetrarem e se
instalarem nos lares, nas igrejas, no mundo do trabalho, no entretenimento, na
subjetividade e na afetividade dos indivíduos singulares!
Essa atmosfera cultural se
apresentava, desde a mais tenra idade, como modelo a ser seguido e aprendido ao
longo da vida. Ela fazia do beber, do fumar e do jogar um exemplo a ser
seguido. O adensamento dessa presença se fazia sentir no uso da bebida, da
droga e do jogo não somente como fontes de prazer e de sociabilidade, mas
também como estratégias de fuga da realidade. O interessante é que, quando
muitos se sentem tristes, vazios, em crise, aperreados, por alguma razão, uma
das possibilidades que vislumbram de enfrentamento da situação se expressa
justamente na busca da bebida, do fumo e/ou do jogo como refúgio, conforto e
solução do problema vivido!
Os efeitos desses artefatos
adquiriram um novo status, uma nova função sociocultural, a de serem
terapêuticos e redentores! Em outras palavras, parecem entidades divinas
portadoras de uma espécie de poder capaz de proporcionar o divã, o nirvana, a
libertação. Embriagados, contemplando a fumaça que esvanece no ar, sentido os
efeitos neurais do álcool e da nicotina, encantados com os desafios, as expectativas
de vitória e os simulacros das apostas, o consumidor fiel imagina que seus
problemas desapareceram, foram resolvidos!
Hoje, tenho a impressão de
que esses três artefatos culturais foram erigidos como uma espécie de símbolo
da sociabilidade contemporânea! Capazes de mediarem às relações intersubjetivas
entre os indivíduos singulares, os grupos e as classes sociais! Ícones
transversais que perpassam vários lugares sociais, vários segmentos sociais e
se instituem como parâmetros de uma moralidade que captura afetos, que
estrutura valores, consolida interesses sociopolíticos e mercadológicos e
institui práticas locais, nacionais e internacionais! O valor simbólico dessa
tríade, associado ao prazer ou a dor consolida mundialmente o fenômeno.
O cotidiano é testemunha de
tudo isso! O ato de ver e de observar esses acontecimentos foi uma estratégia
inconsciente utilizada para saber e decidir! Não li sobre o assunto, pois ainda
não tinha despertado a curiosidade epistemológica para conhecê-lo, para saber
sobre as histórias, os efeitos na saúde das pessoas, as implicações familiares
e sociais dessa tríade cultural! O mundo da vida foi meu primeiro livro, minha
fonte de conhecimento! Vi, antes de me interessar em ler! Decidi a partir do
que vi!
Como fugir de seus enlaces,
de suas amarras, se nos encontramos imersos nessa atmosfera cultural? Como não
se deixar seduzir por seus cantos, encantos e promessas de autoafirmação, de
reconhecimento, de realização pessoal e êxito social? Como escapar, renunciar,
se esquivar do consumo, da tradição do álcool, do fumo e das apostas nos jogos
de azar? Confesso que não sei! Cada caso é um caso! Parece-me que não há
resposta única para perguntas tão complexas e diversas! Penso que cada um deve
buscar a resposta mais adequada para cada caso que quiser conhecer, que desejar
compreender e que aspirar descobrir alternativas de encaminhamento e
enfrentamento.
Contento-me, aqui, por hora,
em responder a pergunta formulada por meus filhos “pai, por que você não bebe,
não fuma e não joga?”, com a seguinte afirmativa: quando criança, eu vi que não
era bom, por isso decidi não fazer. Desde então, não bebo, não fumo e não jogo!
Hoje, reconheço a sabedoria e a relevância dessa decisão e os efeitos positivos
que ela gerou em minha vida!
João
Pessoa, 29 dezembro de 2012.