Por Erenildo João Carlos
O esforço reflexivo empreendido e os achados resultantes de nossa observação cotidiana e escavação de falas ouvidas em conversações diversas, exigem que ainda sejam assinalados alguns pontos, vistos como relevantes em nossa trajetória investigativa. Vejamos.
Primeiro ponto. Considerando que o dizer e os ditos retóricos são representantes de um modo de dizer centrado em fins, estrategicamente concretizados, pode-se afirmar, de certo modo, que eles não funcionam a partir de uma única regra ou um único jogo retórico. Ao contrario, incluem uma diversidade de alternativas possíveis, delineada a partir da natureza de diferentes fins. Graças à especificidade de cada fim, a regra ou o jogo retórico é instaurado. Caso, de fato, existisse uma única regra ou um único jogo que definisse o funcionamento do dizer retórico, poderíamos considerar que esse parâmetro seria a adequação eficiente entre os meios selecionados e os tipos/gêneros de fins desejados.
Segundo ponto. Considerando que a premissa da centralidade do dizer retórico é fundamentada no fato de que as regras e os jogos instaurados obedecem a fins estabelecidos, torna-se evidente que o conjunto de elementos retóricos mobilizados, objetiva, em ultima instância, produzir o convencimento nos participantes da conversação sobre alguma coisa. No transcorrer da conversação, o dizer retórico opera uma espécie de apropriação dos outros ditos (sinceros, verdadeiros, obrigatórios, morais, religiosos, políticos, educativos, estéticos, éticos etc.) em função de seus interesses. A apropriação ocorre por meio de uma prática de conversão efetivada através de estratégias de perversão, de inversão e de divergência do conteúdo enunciativo, constitutivo dos outros modos de dizer. Nesse processo, o conteúdo selecionado dos referidos ditos são fracionados, desconectados, resignificados, desconstruídos, desqualificados, elididos, negados, evidenciados, correlacionados, exaltados, aproveitados ou não, em função das peculiaridades dos fins retóricos almejados. Ao operar a conversão, o dizer retórico acaba por produzir efeitos de verdade e de sentido, sintetizados nos ditos retóricos, que deverão, por sua vez, serem acolhidos e aceitos como legítimos pelos participantes da conversação, serem interiorizados e utilizados como parâmetro orientador da concepção de mundo, da fala e da ação em situações concretas, vividas pelo falante.
Terceiro ponto. Considerando que os dizeres e os ditos retóricos intencionam realizar seus fins estrategicamente, devemos considerá-los, por natureza, como produtivos. A produtividade dos meios se encontra, precisamente, em sua utilidade. Ou seja, se os fins estabelecidos forem alcançados, os meios adotados cumprem sua função. Portanto, para serem produtivos, exige-se que o dizer e os ditos retóricos sejam competentes suficientemente para acionar, selecionar, mobilizar, organizar e operar os saberes existentes e necessários, para pôr em funcionamento as regras e realizar o jogo em questão da melhor forma possível, para desconstruir, reconstruir e criar, se for o caso, novas regras e jogos, apropriados à efetivação do fim estabelecido. Quando o dizer e o dito não produzem esses efeitos, deixam de ser úteis. Ao perder sua utilidade, tornam-se improdutivos e, consequentemente, descartáveis. O abandono dos dizeres e dos ditos improdutivos faz com que o fluxo da produção de novos dizeres e ditos seja uma constante da prática retórica. Além do abandono, há, no fluxo do devir retórico, a substituição e o aparecimento de novos dizeres e ditos. Nesse sentido, nota-se que é próprio do dizer e dos ditos retóricos serem, necessariamente, criativos, produtivos e competentes. O circuito de emergência, arrefecimento e extinção dos meios retóricos é uma característica da ordem estratégica do dizer e dos ditos retóricos, representante do seu modo de funcionamento e integrante das condições de possibilidade de sua existência enquanto tal.
Quarto ponto. Considerando que o dizer retórico, fundado na relação estratégica entre meio e fim, instaura a existência de um modo de ser particular no campo da linguagem, em geral, e da fala, em particular, ontologicamente assinalada por uma racionalidade instrumental, torna-se evidente a presença de um modo de existir da razão: de uma razão que ordena, classifica, articula, mobiliza, identifica e combina o conteúdo das coisas que se diz sobre algo para alguém, tendo em vista fins desejados. Com efeito, os ditos retóricos são racionais e estratégicos, são exemplos singulares de um modo de ser da razão marcado pelo crivo da estratégia, do uso instrumental da própria razão - razão-instrumento -, que fixa fins e busca realizá-lo da melhor maneira possível. Por isso que o conjunto das coisas ditas, retoricamente falando, objetiva sempre um fim determinado. De certo modo, esse modo de ser possibilita que o dizer e os ditos retóricos estejam livres do comprometimento com um conteúdo vinculado a questão da verdade, da sinceridade, do consenso, da moral, do sagrado, da ética e das responsabilidades políticas, a exemplo dos outros dizeres e ditos já mencionados e tratados nesse blog.
Quinto ponto. Considerando a linguagem como um complexo social amplo e particular, pode-se dizer, comparativamente, que assim como a literatura é a forma de existência mais rica de possibilidades da linguagem que se afirma enquanto linguagem, o dizer e os ditos retóricos representam um território da linguagem que expressam as formas mais ricas do discurso, enquanto enunciado. Em outras palavras, se de um lado, pode-se afirmar que a literatura é o modo de existência mais desenvolvido da natureza sígnica da linguagem; de forma similar, pode-se entender que os ditos e o dizer retórico são artefatos culturais da fala que evidenciam o caráter enunciativo do discurso. Sendo, por isso mesmo, os representantes mais desenvolvidos do discurso, enquanto prática efetivada. A retórica é, nesse sentido, uma ferramenta que racionaliza, de forma exemplar, as melhores alternativas para atingir os fins estabelecidos pelo falante em uma dada conversação, vivida e experimentada na imediaticidade do mundo cotidiano.
Sexto ponto. Considerando que o dizer e os ditos retóricos representam um modo estratégico e especifico de se ocupar com a questão do convencimento, pode-se dizer que eles têm assento difuso, ramificado e proliferado em diversos lugares da sociedade, haja vista serem diretamente afeitos a práticas sociais e culturais com função similar, a exemplo das práticas ideológicas desenvolvidas, por exemplo, no âmbito familiar, escolar, religioso, moral, político, jurídico e midiático. Nesse sentido, não devemos nos surpreender se reconhecermos em nós e nos outros, com quem convivemos, o uso intencional ou inconsciente do dizer e dos ditos retóricos.
Sétimo ponto. Com efeito, nossa reflexão arqueológica aponta, dentre outras conclusões, para o fato de que (a) o dizer e os ditos retóricos têm uma existência objetiva no mundo existencial dos falantes e de que eles são, indiscutivelmente, artefatos da cultura oral, entranhados no seio das práticas sociais; (b) de que funcionam como uma espécie de marco regulatório de pronunciamentos de diferentes falantes concretos, situados em diversos lugares da vida social contemporânea; (c) de que, por fim, precisamos conhecer o modo como funcionam a fim de compreender e explicitar a maneira como interditam, produzem resistências e desviam a realização de um exercício oral efetivo, assentado no horizonte de uma ética do dizer!
João Pessoa, 25 de junho de 2013.