domingo, 23 de junho de 2013

DITOS RETÓRICOS - PARTE III



Por Erenildo João Carlos

O esforço reflexivo empreendido e os achados resultantes de nossa observação cotidiana e escavação de falas ouvidas em conversações diversas, exigem que ainda sejam assinalados alguns pontos, vistos como relevantes em nossa trajetória investigativa. Vejamos.

Primeiro ponto. Considerando que o dizer e os ditos retóricos são representantes de um modo de dizer centrado em fins, estrategicamente concretizados, pode-se afirmar, de certo modo, que eles não funcionam a partir de uma única regra ou um único jogo retórico. Ao contrario, incluem uma diversidade de alternativas possíveis, delineada a partir da natureza de diferentes fins. Graças à especificidade de cada fim, a regra ou o jogo retórico é instaurado. Caso, de fato, existisse uma única regra ou um único jogo que definisse o funcionamento do dizer retórico, poderíamos considerar que esse parâmetro seria a adequação eficiente entre os meios selecionados e os tipos/gêneros de fins desejados.

Segundo ponto. Considerando que a premissa da centralidade do dizer retórico é fundamentada no fato de que as regras e os jogos instaurados obedecem a fins estabelecidos, torna-se evidente que o conjunto de elementos retóricos mobilizados, objetiva, em ultima instância, produzir o convencimento nos participantes da conversação sobre alguma coisa. No transcorrer da conversação, o dizer retórico opera uma espécie de apropriação dos outros ditos (sinceros, verdadeiros, obrigatórios, morais, religiosos, políticos, educativos, estéticos, éticos etc.) em função de seus interesses. A apropriação ocorre por meio de uma prática de conversão efetivada através de estratégias de perversão, de inversão e de divergência do conteúdo enunciativo, constitutivo dos outros modos de dizer. Nesse processo, o conteúdo selecionado dos referidos ditos são fracionados, desconectados, resignificados, desconstruídos, desqualificados, elididos, negados, evidenciados, correlacionados, exaltados, aproveitados ou não, em função das peculiaridades dos fins retóricos almejados. Ao operar a conversão, o dizer retórico acaba por produzir efeitos de verdade e de sentido, sintetizados nos ditos retóricos, que deverão, por sua vez, serem acolhidos e aceitos como legítimos pelos participantes da conversação, serem interiorizados e utilizados como parâmetro orientador da concepção de mundo, da fala e da ação em situações concretas, vividas pelo falante.

Terceiro ponto. Considerando que os dizeres e os ditos retóricos intencionam realizar seus fins estrategicamente, devemos considerá-los, por natureza, como produtivos. A produtividade dos meios se encontra, precisamente, em sua utilidade. Ou seja, se os fins estabelecidos forem alcançados, os meios adotados cumprem sua função. Portanto, para serem produtivos, exige-se que o dizer e os ditos retóricos sejam competentes suficientemente para acionar, selecionar, mobilizar, organizar e operar os saberes existentes e necessários, para pôr em funcionamento as regras e realizar o jogo em questão da melhor forma possível, para desconstruir, reconstruir e criar, se for o caso, novas regras e jogos, apropriados à efetivação do fim estabelecido. Quando o dizer e o dito não produzem esses efeitos, deixam de ser úteis. Ao perder sua utilidade, tornam-se improdutivos e, consequentemente, descartáveis. O abandono dos dizeres e dos ditos improdutivos faz com que o fluxo da produção de novos dizeres e ditos seja uma constante da prática retórica. Além do abandono, há, no fluxo do devir retórico, a substituição e o aparecimento de novos dizeres e ditos. Nesse sentido, nota-se que é próprio do dizer e dos ditos retóricos serem, necessariamente, criativos, produtivos e competentes. O circuito de emergência, arrefecimento e extinção dos meios retóricos é uma característica da ordem estratégica do dizer e dos ditos retóricos, representante do seu modo de funcionamento e integrante das condições de possibilidade de sua existência enquanto tal.

Quarto ponto. Considerando que o dizer retórico, fundado na relação estratégica entre meio e fim, instaura a existência de um modo de ser particular no campo da linguagem, em geral, e da fala, em particular, ontologicamente assinalada por uma racionalidade instrumental, torna-se evidente a presença de um modo de existir da razão: de uma razão que ordena, classifica, articula, mobiliza, identifica e combina o conteúdo das coisas que se diz sobre algo para alguém, tendo em vista fins desejados. Com efeito, os ditos retóricos são racionais e estratégicos, são exemplos singulares de um modo de ser da razão marcado pelo crivo da estratégia, do uso instrumental da própria razão - razão-instrumento -, que fixa fins e busca realizá-lo da melhor maneira possível. Por isso que o conjunto das coisas ditas, retoricamente falando, objetiva sempre um fim determinado. De certo modo, esse modo de ser possibilita que o dizer e os ditos retóricos estejam livres do comprometimento com um conteúdo vinculado a questão da verdade, da sinceridade, do consenso, da moral, do sagrado, da ética e das responsabilidades políticas, a exemplo dos outros dizeres e ditos já mencionados e tratados nesse blog.

Quinto ponto. Considerando a linguagem como um complexo social amplo e particular, pode-se dizer, comparativamente, que assim como a literatura é a forma de existência mais rica de possibilidades da linguagem que se afirma enquanto linguagem, o dizer e os ditos retóricos representam um território da linguagem que expressam as formas mais ricas do discurso, enquanto enunciado. Em outras palavras, se de um lado, pode-se afirmar que a literatura é o modo de existência mais desenvolvido da natureza sígnica da linguagem; de forma similar, pode-se entender que os ditos e o dizer retórico são artefatos culturais da fala que evidenciam o caráter enunciativo do discurso. Sendo, por isso mesmo, os representantes mais desenvolvidos do discurso, enquanto prática efetivada. A retórica é, nesse sentido, uma ferramenta que racionaliza, de forma exemplar, as melhores alternativas para atingir os fins estabelecidos pelo falante em uma dada conversação, vivida e experimentada na imediaticidade do mundo cotidiano.

Sexto ponto. Considerando que o dizer e os ditos retóricos representam um modo estratégico e especifico de se ocupar com a questão do convencimento, pode-se dizer que eles têm assento difuso, ramificado e proliferado em diversos lugares da sociedade, haja vista serem diretamente afeitos a práticas sociais e culturais com função similar, a exemplo das práticas ideológicas desenvolvidas, por exemplo, no âmbito familiar, escolar, religioso, moral, político, jurídico e midiático. Nesse sentido, não devemos nos surpreender se reconhecermos em nós e nos outros, com quem convivemos, o uso intencional ou inconsciente do dizer e dos ditos retóricos. 

Sétimo ponto. Com efeito, nossa reflexão arqueológica aponta, dentre outras conclusões, para o fato de que (a) o dizer e os ditos retóricos têm uma existência objetiva no mundo existencial dos falantes e de que eles são, indiscutivelmente, artefatos da cultura oral, entranhados no seio das práticas sociais; (b) de que funcionam como uma espécie de marco regulatório de pronunciamentos de diferentes falantes concretos, situados em diversos lugares da vida social contemporânea; (c) de que, por fim, precisamos conhecer o modo como funcionam a fim de compreender e explicitar a maneira como interditam, produzem resistências e desviam a realização de um exercício oral efetivo, assentado no horizonte de uma ética do dizer! 


João Pessoa, 25 de junho de 2013.



domingo, 16 de junho de 2013

DITOS RETÓRICOS - PARTE II



Por Erenildo João Carlos

Antes de continuarmos nossa trajetória de escavar as camadas do dizer e dos ditos retóricos, tendo em vista conferir visibilidade às especificidades do modo como existem, parece-me necessário nos atermos um pouco em torno de um aspecto, associado ao significado dos termos ‘fins e meios’, assinalado no conjunto de nossa reflexão. Essa parada é importante para que possamos diferenciar e, portanto, não confundir, o modo singular como ‘os fins estrategicamente almejados’ aparecem no âmbito da linguagem, mais especificamente, no dizer retórico, com o modo de sua presença em outros lugares do saber, a exemplo dos que se ocupam em conversar sobre a natureza/vida e a sociedade/razão, em geral.

Em primeiro lugar, ao deslocar nossa atenção para a dinâmica da natureza, podemos notar que a fixação de fins e meios adequados e o estabelecimento de relações apropriadas entre eles são acontecimentos da ordem da vida. Em outras palavras, os seres vivos em geral são levados a realizarem fins e a buscarem meios que possibilitem sua sobrevivência. Manter-se vivo, nesse sentido, é uma questão ontológica, isto é, relaciona-se diretamente a existência da vida do próprio ser. Sem vida o ser não existe!

Nesse processo dinâmico e complexo, articulado e combinado pelas determinações naturais e seus acasos, os seres vivos lutam para viver e perpetuar suas espécies: procuram alimentos e lugares seguros; acasalam, cuidam de si, da prole e do grupo, aprendem e transmitem seus modos de lutar pela sobrevivência, sempre em situações imediatas e concretas. Nesse ínterim, cada uma dessas atividades é desenvolvida e aperfeiçoada pelo crivo da observação de acontecimentos, da imitação de comportamentos e do ensaio e erro de ações e procedimentos, vividos em diversas circunstâncias, acasos e climas; experimentadas em diferentes lugares e relações, que se estabelecem com os outros seres vivos, pela via das peculiaridades do corpo que possuem, dos instintos e das habilidades aprendidas, acumuladas por cada indivíduo singular e geração da espécie.

É precisamente no acervo proporcionado pelas circunstâncias imediatas da vida (guardada em forma de instinto e habilidades) que o indivíduo e o grupo de seres vivos escolhem os meios mais adequados para atenderem suas necessidades e atingirem o fim supremo da sobrevivência. As alternativas inadequadas colocam um risco permanente a existência dos seres vivos. Risco que podem resultar em perdas de diferentes tipos: do alimento, que resulta em fome; do ferimento, que resulta em sofrimento; do território, que resulta em insegurança; da vida, que resulta em morte. 

Observa-se, portanto, na natureza, que a complexidade da consciência e do estabelecimento (separado ou articulado) da ligação entre fins e meios se relaciona diretamente ao atendimento das necessidades impostas pela própria natureza, que exige a reprodução da espécie e sua adaptação ao meio. Do grau de consciência desse fato depende a sobrevivência do ser vivo. Quanto mais desenvolvida sua consciência, mais adaptado o ser vivo será a seu habitat. Sobreviver, nesse sentido, é uma questão de adaptação, isto é, de ajustamento adequado entre fins e meios.

Em segundo lugar, ao focalizar nossa atenção no campo da sociedade, verificamos o aparecimento de outras necessidades, que não têm o mesmo caráter natural da vida em geral, mas que também ganham um sentido necessário e um conteúdo de objetividade, em função da existência de sua conexão ontológica com a cultura da qual faz parte. Não obstante tal constatação, o que desejamos assinalar é o fato de que na sociedade, a articulação entre fins e meios aparece de uma maneira peculiar ao modo humano de ser: a articulação entre esses dois termos adquire as cores da razão. 

São inúmeras as implicações da peculiaridade desse modo de ser racional da consciência humana no que diz respeito à relação entre fins e meios. Para os propósitos de nossa reflexão, chamamos a atenção tão somente para quatro aspectos da razão, a saber: a antecipação intencional da ligação, a seleção de alternativas existentes no campo do saber, a combinação imaginária de novas articulações e a produção criativa de novos meios.

a) A antecipação intencional de fins, meios e de suas ligações. O componente humano da razão permite que qualquer indivíduo - situado em qualquer tempo e lugar da história, cuja razão se faça presente – possa ir além da fixação de fins e da escolha de meios adequados para alcançá-los. Ou seja, o ser humano, diferentemente dos outros seres vivos, pode antecipar a um só tempo os três termos da questão, antes mesmo de se efetivar a ação concreta que visa realizar os fins objetivados. O ser humano é capaz de planejar o futuro, elaborar planos para o amanhã.

b) A seleção de alternativas existentes no campo do saber. A antecipação intencional do par fim-meio e da ligação adequada entre os dois termos objetiva o exercício de escolha das melhores alternativas possíveis. O que somente pode ser levado a cabo efetivamente, quando se acessa a memória, registro do saber acumulado sobre o que se almeja. Em outras palavras, a razão, ao antecipar os três termos, mobiliza e articula o passado e o presente. Ao fazer isso, ela não se limita ao exercício da pura reflexão e da observação sistemática desinteressada do mundo concreto e imediato. Ao contrário, ela aciona a um só tempo os sabres prévios disponíveis sobre a questão e, no exato momento do desenvolvimento histórico e social, no qual se insere o indivíduo e a sociedade, escolhe as melhores alternativas. É no arquivo do saber que se encontra o acúmulo de informações sobre a articulação meio-fim.

c) A combinação imaginária de novas articulações. O exercício antecipado da escolha de fins e meios, das articulações mais adequadas entre um e outro, potencializada seja pela consciência do presente e do passado, não pode, entretanto, ser confundido com o movimento do real, haja vista ele ainda não ter acontecido na imediaticidade do mundo presente e passado. Isso significa que a razão humana tem a capacidade de produzir uma representação imaginária do futuro, ou seja, uma espécie de um mundo fora da história, um mundo ‘que pode ser, ou vir a ser’. Em função do ‘faz de conta que esse mundo exista’, a razão gera novas articulações entre os termos, que podem ou não acontecer como foi previsto, quando executadas no cotidiano, nas situações concretas da vida social. Portanto, no mundo imaginário da razão, que antecipa os acontecimentos, ocorre o exercício da produção de novas articulações entre fins e meios, cuja pertinência somente poderá ser reconhecida como válida e apropriada após sua confirmação no mundo real.

d) A produção criativa de novos meios. Em face da fixação de fins necessários naturalmente ou socialmente postos, o ser humano busca racionalmente realizá-los. Nesse processo racional, de antecipação de fins, de meios e de novas articulações, os indivíduos singulares, os grupos sociais e as formações sociais visitam o acervo existente, a memória guardada e o saber prévio acumulado tendo em vista atender suas necessidades naturais e sociais. Ao se deparar com o conhecimento da inexistência de alternativas adequadas, o ser humano entra em uma empreitada diferente, da adaptação, próprias dos seres vivos em geral, e da busca da escolha mais adequada entre fins e meio, presentes no universo do saber existente. Sua trajetória passa a ser pautada em função da produção criativa de meios ainda não disponíveis no acervo. Nesse processo ele observa, ensaia, simula, experimenta, produz novos meios. Essas ações e procedimentos almejam produzir instrumentos e tecnologias que viabilizem efetivamente a realização dos fins desejados, sejam eles necessários à sobrevivência do gênero humano, enquanto ser vivo; sejam eles necessários à cultural socialmente posta. É sabido que esse atributo da razão fez com que pudéssemos produzir diversas invenções, a exemplo do fogo, do vestuário, da flecha, das armas, da caça, do arado, da agricultura, dos utensílios domésticos, da moradia, da escrita, da imprensa, das estradas, do avião, da televisão, do cinema, do vídeo, do computador, do foguete, do satélite, das artes, das filosofias, das religiões, das ciências e de tantos outros instrumentos, ferramentas, tecnologias e práticas que serviam de meios para atingir os fins de sobrevivência e de construção de uma vida melhor, assim como, contraditoriamente, de negação da própria vida, de domínio, exploração ou destruição da natureza e de um ser humano sobre o outro.

Em terceiro lugar, não obstante o uso corrente dos termos ‘fins e meios’ circular e definir modos de significar, enunciar e de abordar o assunto em vários campos de saberes, em se tratando do dizer e dos ditos retóricos, a escavação que empreendemos, no âmbito da fala, aponta uma relação específica entre os dois termos. Neles, o caráter estratégico, seria o critério central, o núcleo de articulação entre fins e meios. É, precisamente, esse modo de existência dos ‘fins e dos meios’, que caracteriza o dizer e os ditos retóricos que estamos tratando, aqui. Nosso intuito, portanto, é o de problematizá-lo. O caráter estratégico é um componente da relação entre os dois termos que a razão opera, constrói e produz, de forma primorosa no âmbito da fala e das relações intersubjetivas socialmente construídas entre diversos falantes em situações determinadas!

Como vimos na Parte I de nossa reflexão e veremos na III, o sentido que impregna e forja a semântica dos termos ‘fins e meios’ usados no dizer e nos ditos retóricos não é o mesmo do sentido empregado correntemente quando se fala a respeito, por exemplo, de fins e meios, estrategicamente fixados, em função do atendimento de necessidades naturais dos seres vivos, em geral, ou existenciais, dos seres humanos, em particular.

João Pessoa, 16 de junho de 2013.