segunda-feira, 24 de novembro de 2014

DITOS RELIGIOSOS IV



Por Erenildo João Carlos


Nesse texto, objetivo complementar as reflexões anteriores sobre os ditos religiosos, assinalando achados já mencionados, e acrescentando outros à análise empreendida sobre a especificidade do modo de existência dos ditos e do funcionamento dos dizeres genuinamente religiosos.

Em primeiro lugar, uma questão de procedimento. Nossa investigação toma as falas casuais do cotidiano, como a fonte do exercício de escavação dos ditos e dos dizeres. Entendemos que os registros orais, mais precisamente, as falas se configuram como uma fonte rica de informações. Portanto, ouvi-las e observá-las atentamente, analisar seu conteúdo, adentrar no universo de seus elementos e combinações constituintes, descrever suas regras de funcionamentos, cria, sem sombra de dúvida, um campo de possibilidades de investigações, não somente sobre a diversidade de aspectos presentes no conteúdo, que os ditos circulam, como sobre a maneira de ser e funcionar do modo operandi de seu dizer. Tais reflexões e investigações, quando produzidas, de forma sistemática e rigorosa, podem problematizar uma série de saberes e de práticas sobre a linguagem, sobre a constituição da subjetividade dos indivíduos, seu modo de conceber e se relacionar consigo, com o outro e com o mundo. Os registros orais, com efeito, se configuram como uma via de construção de saberes específicos sobre o tecido cultural que organiza as relações sociais vigentes e dominantes, que desenha falas e dizeres possíveis.

Em segundo lugar, os registros orais, presentes nas falas cotidianas dos indivíduos, são tratados como mediação. Através de suas formulações (proferimentos, afirmações, comentários, anúncios, saberes...) podemos acessar os ditos e os dizeres praticados efetivamente, que, de certo modo, integram o processo cultural de produção capilar da circulação do conteúdo constituinte da subjetividade e da individualidade de indivíduos determinados, a exemplo do universo cultural composto pelas concepções de mundo, pelas regras de conivências, pelos princípios, padrões de conduta aceitos, modos de relações estruturados e organizados, a partir de valores positivados socialmente. 

Em terceiro lugar, os ditos e dizeres religiosos sinalizam que vivemos em uma sociedade que valoriza positivamente os artefatos culturais religiosos. Assim sendo, eles (ditos e dizeres) servem como fonte de informações sobre uma série de saberes religiosos, já cristalizados, objetivados e materializados em condutas, vivências, atos, gestos, práticas, rituais e textos institucionalizados, que reproduzem uma espécie de subjetividade e de individualidade, para o bem ou para o mau, pautada no critério da crença (parâmetro fundamental de produção e articulação dos artefatos culturais religiosos). 

Em quarto lugar, os ditos religiosos, circulantes em lugares e tempos diferentes, em circunstâncias e situações diversas, evidenciam um fato: a individualidade e a subjetividade religiosas são tecidas a partir de, pelo menos, três posições específicas: a primeira posição é a do indivíduo comum, sem vínculo confessional, que orienta seus saberes, consciência e conduta; suas decisões, seus sentidos de vida e seus relacionamentos consigo mesmo, com o mundo e com as outras pessoas a partir do parâmetro da crença; a segunda posição é do devoto, ocupada pelo indivíduo que professa uma determinada fé religiosa, e que, em função dela, esforça-se por adequar sua individualidade e subjetividade aos valores e doutrinas instituídos no e pelo campo religioso escolhido; e, por último, a posição do teólogo, acolhida pelo indivíduo responsável, comprometido e militante, que trabalha cuidadosamente na feitura do desenho discursivo, ideológico e doutrinário da crença em questão. Desenho que fundamenta, justifica e explicita a existência e o funcionamento das concepções religiosas, adotadas na vida das pessoas e da sociedade. Em resumo: as três posições encontradas foram: a do crente comum, que regra sua vida a partir do critério do ´creio logo existe´; a do devoto, que professa uma fé determinada como ‘único caminho, verdade e vida´; e a do teólogo, que estuda, sistematiza e produz um conjunto de argumentos racionais, ideológicos e pragmáticos, necessários ao reconhecimento da crença valorada positivamente e do convencimento das pessoas. 

Em quinto lugar, os três tipos de posições religiosas mencionadas, associadas à institucionalização da diversidade cultural das crenças religiosas positivadas, acabam pondo em circulação e reproduzindo, de modo capilar, o modo de existência singular dos ditos e dizeres religiosos, de um lado, pela formação de individualidades e subjetividades religiosas, de outro, pelo desenvolvimento e refinamento do arcabouço argumentativo erigidos como fundamento, justificava e legitimidade do conteúdo e da forma de uma crença determinada. A versão mais acabada desse processo ocorre quando uma entidade supra-humana, metafisica, transcendental é posta como o fundamento da crença em questão. Fecha-se, assim, o circuito argumentativo-teológico. Quando isso ocorre, temos o parâmetro, por excelência, da produção das falas genuinamente religiosas, que vinculam tanto o sentido e a razão, o começo e o fim da existência, da vida e do mundo, assim como o sofrimento e a felicidade, a produção e a reprodução dos acontecimentos existenciais e históricos, à vontade de um ser supremo.

Em sexto lugar, a assunção de uma entidade transcendental, como o fundamento último da crença religiosa, propicia o aparecimento e a proliferação dos ditos religiosos em sua forma mais pura, específica, plena e genuína. Em outras palavras, quando o dizer religioso dobra-se sobre si mesmo, operando a separação entre os elementos constitutivos de sua existência, a saber, os elementos da realidade e da transcendência, rejeitando o primeiro em função do segundo, o real deixa de ser o critério de aferimento da valorização positiva das coisas e, consequentemente, da crença compartilhada. Com efeito, quando esse acontecimento é produzido no âmbito do dizer religioso, anuncia-se o advento de um território transfigurado, ausente de realidade, vazio de referência, de remissão ao mundo natural e humano. Nesse lugar, a transcendência-simulacro reina e governa, exigindo o abandono, o distanciamento e a renúncia do real das falas dos interlocutores religiosos. Nesse território sagrado do dizer religioso genuíno, a entidade supra-humana e a transcendência-simulacro fundam o sentido, o valor e a verdade, definidoras do contorno das fronteiras do conteúdo e da forma das coisas ditas religiosas. 

Em sétimo lugar, a existência de um lugar vazio de realidade, das ´coisas do mundo´, erige o terreno fértil do dizer religioso, que propicia o aparecimento e o cultivo de diferentes tipos e gêneros de crenças. Ao se distanciar do real, cria-se um campo de possibilidades de emergência de crenças fundadas na intuição, na imaginação e na fantasia: o dizer religioso orienta-se por uma crença que não mais se nutre do saber e do conhecimento. Desse modo, no lugar sagrado do dizer religioso genuíno, a realidade somente pode entrar se for convidada. Quando convidada, somente deve comparecer e permanecer se aceitar o que se crê como certo, correto, verdadeiro e significativo. Nesse lugar do dizer, a realidade somente é acessada e mobilizada na feitura dos ditos, após um processo rigoroso de censura, isto é, de purificação, de conversão e de transfiguração. No solo sagrado da conversação religiosa o sujeito falante e o ouvinte devem aceitar, como rito de passagem e de inserção na comunidade religiosa, o sacrifício e a morte do real, como caminho de superação da ilusão e como via de iluminação da consciência.

Esperamos que as observações sistemáticas tecidas, a partir do material capturado nas falas casuais do cotidiano, e que a reflexão, a análise e a descrição efetivadas, aqui, colaborem para o despertar da curiosidade e do interesse pela realização de investigações e discussões sobre o funcionamento do modo singular de existência dos ditos e dizeres religiosos. 


João pessoa, 24 de novembro de 2014.