domingo, 10 de fevereiro de 2013

DITOS VERDADEIROS


Por Erenildo J. C.


Sabe-se que a experiência de ‘dizer alguma coisa para alguém’, por mais simples que seja, produz o acontecimento de uma situação de comunicação que exige a presença de, pelo menos, quatro características: do falante (‘aquele que diz alguma coisa’ - emissor), do dito (‘as coisas ditas’ - mensagem), do algo (‘aquilo ou aquele sobre o qual falamos’ - referente) e do ouvinte (‘o alguém’ com o qual o falante se comunica - receptor). Com efeito, a situação de comunicação é uma experiência vivida, por cada um nós, falantes e ouvintes, no cenário da cultura da palavra. 

Uma reflexão possível de ser feita, quando nos ocupamos em investigar a problemática do dizer, consiste, precisamente, em pensarmos sobre a vinculação entre as ‘coisas ditas’ e ‘aquilo ou aquele sobre o qual se fala’, isto é, sobre a especificidade de um gênero de afirmação, cujo conteúdo estabelece uma relação de correspondência entre ‘as coisas ditas’ e ‘a existência do que se diz’. Aqui, nomeados de ‘ditos verdadeiros’. Nesse ínterim reflexivo, emergem algumas perguntas, tais como: o que são ‘ditos verdadeiros’? Quais são as características constituíntes da singularidade que definem os ‘ditos verdadeiros’? Qual a relevância e as implicações sociais e cotidianas de formulações e proferimentos dessa natureza? 

Pode-se dizer, resumidamente, que os ‘ditos verdadeiros’ são formulações com caráter de assertiva, isto é, de elaborações que integram uma espécie de afirmação que pretende dizer, de fato, alguma coisa sobre algo. No caso, duas condições são imprescindíveis para a formulação de uma assertiva: primeiro que ‘o algo’ sobre o qual se fala, de fato, exista, seja no mundo da imaginação, da natureza ou da cultura. Segundo, que a formulação produzida sobre ‘o algo’ falado, isto é, ‘o dito’, de fato possa comunicar ‘alguma coisa’ sobre ele. Nesse sentido, quando ouvimos um falante ‘dizer alguma coisa sobre algo’, temos uma ideia, uma representação elaborada da coisa falada. Isto porque, nas ‘coisas ditas’ pelo falante se encontra uma série de aspectos, processos, relações, dimensões, traços, acontecimentos e modos de funcionamento que se fazem presentes efetivamente na existência concreta da coisa sobre a qual ele fala. Por isso, o entendimento de que a correspondência entre aquilo que se diz e aquilo que existe seja o critério de confiabilidade sobre as ‘coisas ditas’. No caso da situação de comunicação em questão, o critério da confiabilidade não tem sua origem e natureza no indivíduo falante, nem como centro a sua subjetividade. Com efeito, nessa relação específica de comunicação, o ouvinte avalia a veracidade das afirmações proferidas, a partir da correspondência entre aquilo que o falante diz e aquilo que foi, é ou está sendo.

A partir da reflexão empreendida sobre ‘ditos verdadeiros’, cabe-me elaborar, pelo menos, três conclusões provisórias. Primeira:  considerando que os ‘ditos verdadeiros’ estão intrinsecamente ligados às noções de verdade e de realidade, a primeira conclusão que chego, aponta para o acolhimento e aceitação positiva da ideia de verdade e de realidade, enquanto conceitos reconhecidos como válidos, graças ao entendimento de que há, na assertiva, uma vinculação necessária entre as ‘coisas ditas’ e o que, de fato, existe. Diferentemente das noções que integram à ordem de funcionamento dos ‘ditos sinceros’, ligados à centralidade do que o falante considera legítimo e da posição social que ele ocupa, ‘os ditos verdadeiros’, por conta de sua constituição ontológica, não aciona, não mobiliza e não opera com noções, tais como: significado, sentido, convicção, crença, valor, ideologia, versão ou ponto de vista ligados subjetivamente ao falante. Até porque os ‘ditos verdadeiros’ se referem aos objetos sobre os quais os ditos aludem, a saber, sobre seu modo de ser singular e suas condições reais de existência. 

Segunda conclusão. Os ‘ditos verdadeiros’ pertencem ao universo de uma série de formulações que integram um modo específico de ‘dizer alguma coisa para alguém’, intrínseco à linguagem empregada pelas ciências, sejam elas exatas, da natureza, humanas, da saúde ou da informação. Os ‘ditos verdadeiros’, enquanto proferimentos produzidos a partir da perspectiva de uma afirmação com caráter de assertiva, identificam o modo, por excelência, do dizer científico. As ‘coisas ditas’ pelo falante pesquisador, sejam elas ditas no momento da revisão da literatura ou da análise dos dados, sejam elas ditas na fase da formulação dos resultados ou das conclusões, no curso de uma pesquisa científica, se não forem ditas, enquanto assertivas, perdem sua validade científica. Certamente, os ‘ditos verdadeiros’ se encontram situados no campo da circulação e da proliferação do conhecimento produzido e acumulado. 

Terceira conclusão: Os ‘ditos verdadeiros’ também são acontecimentos comunicativos ordinárias, isto é, se fazem presentes nas formulações do dia-a-dia produzidas por falantes em suas relações intersubjetivas, estabelecidas em tempos e lugares diversos da vida social. Nessas situações existenciais e sociais, eles, assim como os ‘ditos sinceros’, também podem ser (ou devem ser) erigidos como critérios de confiabilidade das ‘coisas ditas’. Ora, se vivemos experiências cotidianas de comunicação nas quais os falantes, por mais sinceros que sejam, dizem coisas que não existem, que não são ajuizadas pela realidade dos acontecimentos passados ou presentes, cujos fatos não conferem razoabilidade e inteligibilidade e que não corroboram e confirmam o conteúdo da mensagem proferida, é evidente que ‘as coisas ditas’ estarão fadadas ao descréditos, à dúvida, à desconfiança, à rejeição e, portanto, à refutação. 

Infere-se, portanto, desse exercício reflexivo e das conclusões aludidas, que a relevância da discussão sobre ‘os ditos verdadeiros’ é uma evidência observada, seja no contexto geral da sociedade do conhecimento, que assinala a necessidade de assertivas como fundamento do delineamento da produção das ciências e tecnologias, assim como das políticas de Estado e dos governos, das empresas e da sociedade civil organizada, seja na particularidade da vida cotidiana do indivíduo, que requer o parâmetro da assertiva como norte e sustentação da existência de saberes confiáveis e edificantes, capazes de orientar a escolha de alternativas, de decisões e de ações concretas, exequíveis e consequentes, tendo em vista o uso inteligente e econômico de seu tempo, esforço e recurso, a solução de seus problemas existenciais e sociais e a realização das metas e projetos de vida, que pretendem construir. 

João Pessoa, 10 de fevereiro de 2013. 

sábado, 2 de fevereiro de 2013

DITOS SINCEROS


Por Erenildo J. C.



O ato de ouvir e observar cuidadosamente o que os falantes dizem no cotidiano ou em situações especificas, como as que ocorrem durante um encontro familiar, uma reunião de trabalho, uma sessão clínica, um julgamento, uma aula, uma pregação religiosa, uma palestra, um debate politico ou uma divulgação de notícias pela mídia, permite identificar, em certos casos, que o falante não foi sincero sobre o que disse e que, por isso mesmo, acabamos não aceitando ou dando a devida atenção ao que ele disse.

Ora, se a todo momento nos deparamos com a situação de dizer ou ouvir alguém dizer alguma coisa sobre algo, como seria precária nossa relação intersubjetiva, nossa rede de relações sociais, se fossemos movidos pela dúvida permanente a respeito das coisas ditas e ouvidas? Se percebessemos uma constância na ausência (ou de indícios da ausência) de sinceridade dos falantes em relação ao que dizem? Certamente, seria extremamente desconfortável experimentar situações cotidianas ou especializadas de comunicação nas quais os falantes não fossem sinceros: o professor que ensinasse o que não sabe, o estudante que repetisse e copiasse o que não conhece, o pregador que anunciasse o que não crê e não aconteceu, o político que dissimulasse suas reais intenções e interesses, o advogado e a testemunha que mentissem para ganharem a causa em questão, o reporter ou comentarista que enviesasse a informação transmitida, o paciente que contasse o que não sente, os familiares que dissessem o que não ocorre.

A constatação desse acontecimento no mundo da fala, permite formular a premissa da necessidade de um modo diferente de dizer, que aqui denomino, de ‘ditos sinceros’, que deveriam ser inseridos, predominantemente, na ordem social das relações intersubjetivas, importantes para o conhecimento das pessoas com quem falamos e ouvimos, com quem conversamos e dialogamos, com quem convivemos e compartilhamos nossas histórias, os acontecimentos cotidianos, nosso mundo interior e perspectiva de vida!

Considerando o reconhecimento da especificidade e do modo de existência dos ‘ditos sinceros’, elaborei algumas conclusões gerais a partir deles: a) o dito sincero se caracteriza pela correspondência entre a afirmativa do sujeito falante e o conteúdo da sua subjetividade individual; b) existe um conjunto de coisas ditas, que não merece confiabilidade, por conta de que o sujeito falante não fala algo que de fato entenda, acredite, deseje, sinta, imagine ou faça; c) a sinceridade do falante, ao dizer algo, não confere às coisas que ele diz o estatuto de assertiva, isto é, afirmativa verdadeira; d) a sinceridade é um critério necessário à aceitabilidade das coisas ditas na cultura da palavra; e, por fim, e) os ditos sinceros são necessários para que sejam estabelecidas relações intersubjetivas saudáveis e edificantes.

Parece-me, que muito embora não haja uma relação direta entre os `ditos sinceros` e a produção da verdade, uma coisa é certa: eles indicam uma alternativa de dizer algo para alguém a partir do pressuposto de que o que estar sendo dito não tem a intencionalidade de enganar o outro, mas ao contrário, de compartilhar com ele um modo individual de pensar, sentir e viver. 


João Pessoa, 02 de fevereiro de 2013.