sábado, 21 de maio de 2016

DITOS IDEOLÓGICOS



Por Erenildo Joao Carlos


Não sei se o leitor notou, nos escritos que tenho produzido e registrado, no contexto desse espaço virtual, que o termo ‘ideológico’ tem aparecido inúmeras vezes. Não obstante o fato de que eu não tenha me ocupado intencionalmente em refletir sobre os ditos e dizeres ideológicos, o termo aparece e circula recorrentemente no seio dos ditos e dizeres investigados. 

Com efeito, a presença regular de formulações ideológicas nas conversações cotidianas sugere a necessidade de uma investigação mais focada a partir de, pelo menos, duas perspectivas: uma, sobre a especificidade de seu modo singular de existência; outra, sobre a função que elas desempenham no funcionamento de outros ditos e dizeres.

Ao revisitar os achados oriundos das escavações reflexivas feitas no âmbito das falas cotidianas investigadas, observo que a suposta ausência de precisão, ou de um sentido único e específico, ocorre por conta do significado que o termo ‘ideológico’ adquire no interior das regras dos ditos e dizeres problematizados por mim, até aqui. Em outras palavras, a evidente imprecisão e concomitante polissemia do termo ‘ideológico’ se explica, sobretudo, pela função que ele assume no exercício da fala proferida pelo falante no cerne de suas conversações.

Constato, também, que o significante 'ideológico' aparece, geralmente, de dois modos: um, positivo; e, outro, negativo. O modo positivo surge, por exemplo, nos dizeres verdadeiros e sinceros. Neles, a palavra ‘ideológico’ adquire, de um lado, uma conotação associada à visão de mundo, anúncio de projetos e de filosofias de vida, horizonte e campo de luta, sentido e valor existencial, assumidos por indivíduos e agrupamentos de sujeitos sociais. Esse entendimento me faz lembrar, por exemplo, a formulação cantada por Cazuza em sua música, na qual dizia: ‘ideologia, eu quero uma para viver’. De outro lado, o termo vincula-se à representação simbólica das coisas existentes, que codificaria e informaria algo efetivamente existente: acontecimentos, processos, relações, jogo de interesses, casos, experiências, situações, dissimulações, simulacros, discursos, práticas, ritos, procedimentos, saberes, valores etc. Esse significado abarca uma série diversificada de representações, a exemplo de saberes, conhecimentos, teorias, conceitos, métodos, concepções, axiomas, princípios, formulas, esquemas, modelos, regras, procedimentos, instrumentos etc.

Na ordem da dupla semântica da positividade, os ditos ideológicos seriam considerados como uma espécie de formulação sincera, pois, de um lado, retratariam o conteúdo real da subjetividade dos falantes, tais como pensam, sentem, desejam, aspiram, entendem e agem. De outro, uma formulação verdadeira, porque proporcionariam ao ouvinte o conhecimento real das coisas existentes, ou seja, dos assuntos tratados no curso da conversação estabelecidas entre os falantes.

Por sua vez, o modo negativo pode ser encontrado, por exemplo, nos ditos e dizeres retórico-pragmáticos. Neles, o termo ‘ideológico’ assume uma conotação vinculada à ideia de mentira, de dissimulação, de jogo vazio de palavras, geralmente, com fins ocultos e prejudiciais aos ouvintes. Nessa perspectiva, ‘ideológico’ seriam todos os ditos que, de um lado, encobrem a intencionalidade do falante, caracterizando-se, assim, pela dissimulação, pelo esconde-esconde, pelo jogo do não dito e do não revelado, pela ordem do segredo, do indizível. De outro, seriam os ditos que produzem o desconhecimento das coisas sobre as quais se diz algo, identificando-se, assim, como uma espécie de formulação falsa, vazia de referência do real, simulacro. 

No jogo retórico da dupla semântica da negatividade, os ditos ideológicos têm, no primeiro caso, a função de esconder, camuflar, escamotear, desvirtuar as intenções, os interesses e os desejos do falante, bloqueando o acesso à sua subjetividade. No segundo, sua finalidade seria a de elidir a realidade, impedindo os ouvintes de conhecê-la, de entender as coisas tais como elas são efetivamente: funcionaria como um dispositivo de interdição do acesso à informação e ao conhecimento necessário ao desenvolvimento do entendimento e da formação de uma consciência fundada na realidade do assunto posto em questão.

Penso que em um cenário cultural e social afeito à dimensão negativa da ideologia, vale à pena refletir sobre as duas possibilidades de aparecimento do termo ‘ideológico’. De modo que estejamos atentos à maneira de apropriação e emprego assinalado na ordem geral de funcionamento dos dizeres acionados pelos falantes em situações concretas. Que possamos ter ciência dos possíveis modos e efeitos, edificantes e destrutivos dos ditos ideológicos, interpostos no jogo das conversações cotidianas que estivermos implicados. Que saibamos acionar o conhecimento como contraponto à negatividade hegemônica dos ditos ideológicos!


João Pessoa, 21 de maio de 2016.